Guarda de SP testa spray de pimenta nos olhos de próprios agentes; veja vídeo

GCM diz que objetivo é conhecer os efeitos do produto para uma utilização mais adequada

Guarda de SP sofre com efeito de gás de pimenta
Guarda de SP sofre com efeito de gás de pimenta - Reprodução
São Paulo

​A Guarda Civil Metropolitana de São Paulo tem testado nos próprios guardas sprays de pimenta que utiliza em suas operações. Vídeo obtido pela Folha mostra os guardas sofrendo com os efeitos do produto. Após alguns minutos, um deles não suporta e pede para sair da sala.

As imagens contêm um membro da Inspetoria de Operações Especiais (Iope), grupo especial da GCM, disparando forte carga de spray a poucos centímetros dos olhos de sete guardas, que estão enfileirados.

“Aqui é para testar a eficácia do produto para saber se dá para fazer uma contenção com algemação”, diz uma pessoa que conduz a atividade.

“Isso aqui infelizmente tem que ser no olho. Se você errar, você perdeu”, completa a mesma pessoa.

“Vão falando o que vocês estão sentindo para a gente ter uma ideia”, diz uma pessoa que não aparece no vídeo.

O organizador da atividade, então, depois de quase dois minutos, solicita que levante a mão quem não esteja suportando a sessão. Um dos participantes levanta a mão e é retirado da sala, ouvindo a recomendação de lavar os olhos com “água em abundância”.

Alguns dos guardas vestem uniformes camuflados por pertencerem ao destacamento ambiental. Outros trajam o tradicional uniforme azul.

Para Adriana Andreose, diretora presidente da Associação dos Guardas e Servidores do Estado de São Paulo (Ages-SP) e guarda civil classe especial há 21 anos, existem maneiras "menos invasivas" de fazer os testes e que não envolvem o disparo do spray nos olhos.

"É difícil avaliar, pois não conheço os procedimentos do Iope, que tem um treinamento muito específico. Para os demais guardas, o treinamento com spray de pimenta é com disparo no ambiente, para reconhecermos o cheiro, o efeito, para que tenhamos o máximo cuidado no trato com o cidadão, no momento de usá-lo", afirma.

"Como apresentado no vídeo é realmente chocante, parece desumano, mas teria de saber se há e qual é o contexto. Eu não gostaria se fosse comigo, mas não sei quanto aos parceiros mostrados no vídeo", diz Andreose, acrescentando que por vezes os guardas temem a reprovação do grupo ou constrangimentos caso se recusem a participar dessas atividades.

Para Rafael Alcadipani, professor e pesquisador da FGV, o vídeo mostra indícios de abuso e um treinamento ministrado de maneira pouco profissional.

"Faltou um treinamento mais profissional e que não exponha os profissionais ao ridículo, com jocosidade, piadinhas. O uso de armamento menos letal por parte da GCM é preferível sempre, e é até recomendável que o guarda saiba os efeitos dos armamentos que utiliza. No entanto, não pode haver humilhação, como parece ser o caso".

"Parece que uma grande quantidade de spray é colocada nos olhos dos guardas. Há indícios de abuso no vídeo. Quanto o guarda precisa sentir para aprender efetivamente? A quanto gás ele tem que ser exposto para aprender o que precisa? Esses limites são muito tênues e a possibilidade de abuso é grande nesses casos. A gente sempre quer ver a GCM como uma polícia próxima à comunidade. Esse vídeo mostra indícios de que ela está longe desse desejo de todos ", completa.

Tenente-coronel da reserva da Polícia Militar paulista e doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Adilson Paes de Souza classifica o treinamento como "aula de tortura" e "barbárie".

"As guardas foram criadas à luz da Constituição de 1988 com o princípio de serem mais próximas da comunidade. Mas transformaram-se em mini tropas militares do prefeito de plantão. O spray de pimenta é feito para dispersar a multidão, e não para ser aplicado diretamente nos olhos e a menos de 10 centímetros. Fora a humilhação da sessão. O rapaz que não aguenta sai da sala nitidamente constrangido. É uma competição de virilidade", afirma Souza, criticando a postura da GCM em relação ao caso.

"Se a GCM encara esse tipo de situação como natural, é com essa mesma naturalidade que os guardas tratarão as pessoas na rua. E é por isso que vemos tantas pessoas se queixando de abusos nas manifestações dos últimos anos", completa.

Souza diz que nunca viu ou teve notícia de procedimentos similares na Polícia Militar.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública não respondeu se a PM faz testes com spray de pimenta aos moldes do apresentado no vídeo.

A atual gestão municipal, iniciada por João Doria (PSDB) e assumida por Bruno Covas (PSDB), já se envolveu em outras polêmicas envolvendo a GCM.

Em setembro do ano passado, Doria tentou renomear a GCM, que passaria a se chamar “polícia municipal”. O prefeito chegou a posar para fotos com veículos envelopados com a nova marca, mas a Justiça o proibiu de fazer a mudança de nome.

Em março de 2018, reportagem da Folha mostrou que o comandante-geral da GCM, Carlos Alexandre Braga, nomeado por Doria, é réu sob a acusação de desvio de dinheiro público e falsificação e uso de documento público falso. Braga foi afastado da função, mas voltou ao cargo posteriormente.

Em nota, a Guarda Civil Metropolitana informa que "as imagens apresentadas fazem parte de um curso de 40 horas ministrado pelo ​Iope (Inspetoria de Operações Especiais), devidamente credenciado e com o aval da Academia de Formação em Segurança Urbana da Guarda Civil Metropolitana. O curso contém aulas teóricas, como noções de Direito Penal e de Direitos Humanos, e também conta com aulas práticas."

"Os GCMs que estão participando do curso são voluntários, e seus capacitadores foram devidamente treinados na empresa para utilizar os espargiadores individuais, modelo GL 108 E, cujo princípio ativo de capsaicina natural, um composto de gás de pimenta e espuma, perde seus efeitos imediatamente quando em contato com água. A finalidade é conhecer os efeitos do produto para uma utilização mais adequada quando necessário. É importante ressaltar que os instrutores são capacitados pela empresa Condor, que possui o aval do Exercito Brasileiro para comercialização do produto", completa.

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