Atentados recentes fizeram Canadá voltar a discutir banimento de armas

Leis revogadas nesta década vetavam venda de armamento paramilitar e previam cursos obrigatórios

Fernanda Mena
Montreal (Canadá)

O aumento de homicídios e massacres públicos, em que atiradores abrem fogo contra civis, como ocorreu na Catedral de Campinas na última terça-feira (11), têm desafiado a tradição liberal e a cultura de caça típicas do Canadá, pressionando o governo federal a banir do país o comércio de pistolas e armas paramilitares.

Em julho deste ano, quando um atirador matou uma jovem de 18 anos e uma criança de 10 anos numa ação criminosa que feriu ainda 13 pessoas em Toronto, a câmara municipal da cidade aprovou resolução que pede ao primeiro-ministro Justin Trudeau severas restrições no acesso dos canadenses a armas. 

Outra resolução foi aprovada por unanimidade pela câmara de Montreal, em agosto.

O Canadá é o quinto país do mundo com mais armamentos por habitante, com 34,7 armas para cada 100 moradores, segundo dados do Small Arms Survey. O ranking é encabeçado pelos EUA (120,5 por 100 habitantes) e seguido por Iêmen, Montenegro e Sérvia. O Brasil tem, em média, 8,2 armas para cada 100 habitantes, segundo a pesquisa.

Ainda assim, a taxa de homicídios por armas de fogo no Canadá (0,6 por 100 mil) é menos de um quinto da norte-americana (4,4) e 35 vezes menor que a brasileira (21).

Foi em 1989 que um atentado em Montreal, na província do Quebec, colocou em xeque a tranquila relação dos canadenses com a venda de armas.

Nos primeiros dias de dezembro, Marc Lépine, 25, invadiu a Escola Politécnica da cidade, separou estudantes homens e mulheres e abriu fogo contra o grupo feminino, matando 14 futuras engenheiras e ferindo outras 13 pessoas.

Ele havia sido rejeitado pela instituição de ensino por duas vezes e, em carta escrita antes de cometer suicídio, disse que queria dar “uma lição nas feministas”.

Heidi Rathjen, 52, era uma das alunas da escola e ouviu os sons dos disparos, durante os 13 minutos em que durou o tiroteio, para depois encontrar mortas duas de suas melhores amigas. “Descobrimos o quão trágico podem ser armas em mãos erradas”, lembra Rathjen. “E lançamos uma petição que obteve alguns avanços.”

Rathjen, que se tornou uma das principais ativistas antiarmas do Canadá, refere-se a leis aprovadas em 1991 e em 1995 que baniram o comércio de armas paramilitares e instituíram treinamento específico e verificação de antecedentes para obter licença, que passou a ser verificada e registrada no ato da compra de uma arma. 

“Tecnicamente, conseguimos banir e controlar aquelas armas que apresentam risco público inaceitável. Mas essas leis foram erodidas com o tempo”, explica.

Em 2012 e em 2015, as limitações impostas pela legislação dos anos 1990 foram abolidas por duas novas leis. 

Especialistas avaliam que não se trata de coincidência, portanto, que após 40 anos de reduções consistentes nos homicídios por armas de fogo no país, eles tenham voltado a subir. Nos últimos quatro anos, as taxas de homicídios por arma de fogo canadenses tiveram suas maiores altas em 25 anos.

“Precisamos de medidas que garantam a segurança dos cidadãos, e não vamos conseguir isso armando a população”, opina o vereador Alex Norris, que preside a comissão de segurança pública de Montreal.

“Sabemos que a ideia de que o cidadão está mais seguro com uma arma na cintura conduz a uma situação como a dos EUA, cuja violência armada não encontra paralelo entre as nações desenvolvidas. É algo desproporcional”, avalia.

Para Blair Hagen, vice-presidente da Associação Nacional de Armas de Fogo, organização pró-armas canadense, as restrições “prejudicam apenas os cidadãos que obedecem às leis, mas não atrapalham os criminosos”. “Apoiamos o direito do cidadão de se defender”, discursa. “Armas são propriedade, e é um absurdo submeter os cidadãos que obedecem às leis a registros que limitam seu direito à propriedade privada.”

O discurso sobre armas serem direitos contaminou a política brasileira durante a ascensão do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que pregou a flexibilização do acesso a armas como promessa de campanha.

“O Brasil já é uma sociedade muito armada”, afirma o vereador de Montreal, que viveu no Rio de Janeiro em 1992, quando atuava como jornalista. “A partir da experiência do Canadá, me parece muito pouco prudente aumentar a disponibilidade de armas no país.”

Enquanto nos EUA não é preciso licença ou registro para comprar a maior parte das armas disponíveis, no Canadá a licença só é obtida após um curso de tiro e segurança no manuseio de armas, e a maior parte delas é registrada.

A ativista Rathjen, que diz já ter sido ameaçada por pessoas ligadas ao lobby pró-armas, lembra de casos como o do massacre em uma mesquita da cidade do Quebec, em janeiro de 2017, que matou seis pessoas e feriu outras 19 pessoas.

“O atirador portava uma arma paramilitar e uma pistola, ambas compradas legalmente. A primeira arma falhou, e ainda assim ele foi capaz de disparar 48 balas em menos de dois minutos”, conta ela. 

“Ele tinha problemas psiquiátricos, havia postado nas redes sociais mensagens de ódio contra policiais e minorias e, ainda assim, obteve licença para ter armas”, critica ela, para quem o caso é prova de que os controles não funcionam, o que justifica o banimento de certos armamentos.

Para Hagen, da associação pró-armas, o mesmo caso é usado para argumentar o contrário. “Se as restrições existentes não foram suficientes para evitar que ele tivesse armas, precisamos admitir que os massacres são problemas sociais, e não das armas de fogo.”

O Senado canadense atualmente avalia a proposta de lei C-71, que aumentaria as verificações de antecedentes daqueles que querem comprar armas, mantendo registros de suas compras.

Atrás do balcão da loja de sua família, que comercializa rifles, pistolas e armas paramilitares há mais de 60 anos em Montreal, Rudy Vendittelli engrossa o coro dos descontentes com a proposta. 

“O governo é hipócrita porque as restrições não perturbam os criminosos, mas os cidadãos que cumprem as leis e querem ter armas porque caçam, fazem tiro esportivo ou as colecionam”, afirma.

Para ele, no entanto, ampliar o acesso a armas como forma de proteger do cidadão contra a criminalidade pode ser um tiro no pé. “Essa política é uma faca de dois gumes porque armas, sem treinamento bastante consistente, podem tanto ser usadas contra os outros como contra você mesmo.”

 

Entenda as regras sobre armas no Brasil

É possível ter a posse de uma arma no Brasil? 
Sim, mas é preciso ser maior de 25 anos, ter ocupação lícita e residência certa, não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, comprovar a capacidade técnica e psicológica para o uso do equipamento e declarar a efetiva necessidade da arma

E o porte?
O porte, ou seja, a autorização para carregar e transportar a arma, é proibido, exceto para membros das Forças Armadas, policiais, guardas e agentes penitenciários, entre outros

O comércio de armas é permitido? 
Sim. A proibição foi derrotada em 2005, quando 63,9% dos eleitores votaram pela continuidade do comércio legal de armamentos

O presidente pode revogar o Estatuto do Desarmamento? 
Não. O estatuto é uma lei federal e mudanças precisam ser aprovadas no Congresso

Há projetos para mudar o estatuto no Congresso? 
Sim, há mais de 160 propostas para alterar a lei, e a mais avançada está pronta para ser votada na Câmara

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