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Alexa Salomão

Carta branca aos demônios

Luiz e Guilherme tiveram o caldo de ódio social para fermentar seus piores traços no atual momento brasileiro

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São Paulo

É intuitivo. Em menor ou maior grau, os loucos estão espalhados por aí. Vivem entre nós. Em parte, há uma ou outra loucura que cada um de nós precisa ajustar diariamente para seguir dentro do definido como normalidade. Aos diabinhos que nos assombram é dado o direito ao banho de sol em sessões de terapia ou desabafos em happy hour. Depois, retornam ao silêncio de porões interiores, onde dormem em resignado silêncio.

Será impossível, por mais experiente que seja o profissional dedicado a investigar a questão, definir o que leva dois jovens a gastar mais de um ano pesquisando armas e estratégias de ataque para expor o que têm de pior na alma, matando aleatoriamente companheiros de escola.

Ouvi análises rasteiras também entre colegas de profissão: são criminosos natos, desajustados à margem.

Vamos lá: nesse quebra-cabeça haverá questões psicológicas particulares, histórias de vidas e traços de caráter —menos simplismo.

Há, porém, um componente que se torna cada vez mais assombroso na equação dos distúrbios nacionais: o sinal verde da sociedade brasileira para cultivar ódio e exalar violência. Soltar demônios sem freios é a tendência do momento.

Os jovens Luiz Henrique e Guilherme tiveram o caldo de ódio social necessário à fermentação de seus piores traços.

O Brasil tem degenerado lenta e resolutamente para o culto à violência com as próprias mãos.  

Estranhamente, a faísca dessa raiva saiu da política, que o brasileiro costuma desprezar. O país foi se dividindo entre esquerda e direita e nos combos que cada vertente representaria no imaginário popular.

O prefeito de São Paulo, petista, defendeu ciclovias? Então, bicicleta é coisa de gente da esquerda. Eu não sou petista, logo não ando de bicicleta na rua. A boneca Barbie é loira e lisa? A Barbie é de direita, reprimida e fascista. Eu não sou de direita, minha filha não vai brincar de Barbie. Colocar conjuntinho azul no bebê menino é coisa de direita. Mulheres de esquerda mostram os peitos no carnaval e são vadias.

Não tem fim a panfletagem de besteiras estereotipadas que inundam o cotidiano nacional, agigantadas por comentários e memes nas redes sociais.

Até na mesa da ceia de Natal, famílias brigam, divididas por miudezas preconceituosas.

O capítulo perverso dessa hostilização ao diferente é a crescente legitimação da violência.

Vai-se fortalecendo carta branca à reação desmedida ao outro —o outro que se opõe ao que eu acredito, o outro que me desagrada, o outro que me agride, seja física ou emocionalmente. Eu me considero no direito de responder à altura. Eu vou matar o ladrão com minhas próprias mãos. Eu vou excluir todos aqueles que agridem a mim e ao meu estilo de ser. Eu vou ao extremo, e assumo as consequências.

Os demônios estão sendo soltos sem cerimônia. Não faltam relatos bizarros sobre a escalada de reações violentas inexplicáveis.

Ao se manifestar sobre as mortes na escola em Suzano, O ministro Dias Toffoli, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), foi direto ao ponto: “Violências como essa não fazem parte da nossa cultura”, disse em discurso à Corte.

Podemos iniciar muitas discussões a partir do que ocorreu na Raul Brasil. Falar sobre segurança nas escolas, sobre o impacto dos videogames na formação de crianças, sobre a ascensão de um obscuro anarquismo entre os jovens. Mas se não enfrentarmos e interrompermos a ode à violência que se alastra em nossa cultura, tudo será em vão.

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