Marginais de SP têm 1.300 residências que vão do luxo à rotina com ratos

Moradores relatam problemas crônicos às margens do Tietê; ao lado do Pinheiros, há imóveis de alto padrão e favela

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Vista aérea da marginal Tietê, na Casa Verde, onde imóveis têm os fundo voltados para a pista

Vista aérea da marginal Tietê, na Casa Verde, onde imóveis têm os fundo voltados para a pista Zanone Fraissat/Folhapress

São Paulo

O que para cerca de 1,2 milhão de motoristas por dia é só passagem, para os moradores de 1.300 imóveis é também destino. Ao longo de 47 km, divididos entre as marginais Pinheiros e Tietê, apartamentos de R$ 3,5 milhões e casas improvisadas em antigos terrenos invadidos fazem parte da paisagem paulistana que disputa espaço com o tráfego sem fim de carros, ônibus e caminhões. 

Se nos imóveis de classe alta, concentrados na Pinheiros, a maioria dos problemas fica do lado de fora das janelas antirruído, às margens do Tietê entram sem cerimônia pelas casas poluição, barulho, fuligem, sujeira, pragas urbanas e mau cheiro do rio

É assim, há 30 anos, para a aposentada Roseli Aparecida dos Santos, 60. Ela chegou ao terreno ao lado do CEU Tiquatira, na zona leste, em 1990. "Na época aqui na frente era a favela do Pé Sujo. Vim morar em um barracão de operários de uma obra em que meu marido trabalhou", diz a ex-diarista. 

Assim como ela, quem vive nas marginais, de acordo com dados da Prefeitura de São Paulo, tem o endereço oficial em avenidas como General Milton Tavares de Souza, Presidente Castelo Branco, Morvan Dias de Figueiredo, no caso da Tietê, e rua Hungria ou avenida Magalhães de Castro, no caso da Pinheiros.

No total, há quase 7.400 imóveis nas marginais. A maioria das unidades é formada por escritórios --há 2.806 deles em condomínios, além de 780 flats comerciais. 

Segundo os dados do cadastro municipal, há 113 terrenos nos dois corredores, ao menos 42 indústrias e 8 clubes.

Os 1.300 imóveis residenciais perfazem 214.311.993 m², com uma fração muito pequena de área construída, apenas 5.118.331 m². 

Apartamentos em condomínios são a maioria: 1.227. Na Tietê destacam-se unidades construídas para a população de baixa renda; na Pinheiros, imóveis de alto padrão.

Assim como outras antigas favelas nas marginais deram lugar a conjuntos habitacionais, a Pé Sujo, ao lado da casa de Roseli, sumiu. O CEU chegou, seu barraco de madeira virou uma casa de alvenaria sem reboque, com sala, quarto, banheiro e cozinha, construídos à medida que o dinheiro que sustentava o casal e os sete filhos ia sobrando. 

Do pequeno quintal onde as roupas secam, uma escada de metal, ainda não fixada na parede, leva ao segundo andar em constante construção, lar de uma das filhas. "Treme, mas a gente se acostuma", diz a mulher sobre o efeito dos caminhões --sem especificar se na escada ou na casa toda.

Os problemas, porém, não não são só de quem abre a porta de casa e dá de cara com a marginal. Mineira, Stael Barbosa, 22, mudou-se há dois anos com o marido e o filho para uma casa a cerca de 20 metros da Tietê, no Pari. "Antes de vir para cá, falava com parentes que viviam em São Paulo e achava que era exagero, mas não era", diz. 

Fora os pernilongos, que a obrigam a deixar a casa fechada durante o dia e o ar condicionado ligado, ela teve experiência pior. "No verão passado viajamos e quando voltamos tive que jogar minhas coisas fora porque estava cheio de ratos." 

Stael ainda se surpreende com a vida ao lado da marginal. Um quarteirão antes, bem em frente à pista local, a aposentada Maria Assal, 71, já teve mais de 50 anos para se acostumar. "As pessoas me perguntam do barulho, mas tem hora que nem sinto mais", diz. 

Houve época, porém, que a uma rotina era impossível se acostumar. "Quando ela [a marginal] ficava em silêncio, dava agonia porque alguma coisa estava acontecendo --era enchente", diz ela, que foi morar ali quando a via tinha apenas uma pista e as pessoas podiam pescar no Tietê.

Segundo a aposentada, hoje, a falta de segurança é o principal problema, afirmação confirmada pela vizinha Naryman Ibrahim, assaltada duas vezes ao chegar em casa. "A marginal é rota de fuga. Quando chego procuro observar se há alguma movimentação estranha", diz.


Perfil dos imóveis nas marginais Pinheiros e Tietê

7.400 imóveis fazem parte do cadastro da prefeitura com endereços ao longo das duas marginais, Pinheiros e Tietê
1.300 são residenciais de acordo com os dados da prefeitura
214 milhões de m² é a soma da área ocupada pelos imóveis residenciais
2.806 escritórios fazem parte do total de imóveis cadastrados
113 terrenos estão nas duas marginais
8 clubes esportivos ainda são encontrados nas duas vias



Viver de frente para as marginais exige certa dose de adaptação e resiliência, mas para quem vive de costas para elas a lógica é a mesma.

O piauiense José Francisco Soares, 46, divide com os motoristas da empresa de ônibus interestadual em que trabalha uma pequena casa entre as pontes do Limão e da Casa Verde. A entrada do imóvel não está na marginal, mas na rua Iapó, paralela à pista local. 

Não é preciso saber o que há nos fundos da casa para entender os efeitos. Rachaduras por todo o imóvel deixam claro que dormir ali, com o barulho e o trepidar causado por ônibus e caminhões, só é possível mesmo pelo cansaço. 

"De noite, a cada carreta que passa aí atrás balança tudo", diz. Mas não só isso. "Aqui tem mesmo é muita barata e pernilongo. Eu acostumei, mas para quem é novo é muito pior." 

Três casas ao lado, a professora de robótica Francisca Emília Holanda Neta faz parte dos que ainda precisam se acostumar, ou sair.

Há quatro meses, ela comprou o imóvel por cerca de R$ 350 mil. A rua calma esconde o problema atrás do muro dos fundos. "Oito dias depois de mudar, quis desistir, desfazer o negócio. Chorei muito", diz. "Amo ler, adoro silêncio."
 

MORADORA ILHADA E COBERTURA DE R$ 70 MILHÕES

Do outro lado da cidade, na avenida Magalhães de Castro, bem em frente à marginal Pinheiros, região da City Butantã, próximo à USP, o problema da advogada Leila De Luccia é outro. Sua casa, ela diz, é uma espécie de refúgio, com plantas e piscina, para onde ela se mudou há trinta anos. 

Com o passar do tempo, porém, os vizinhos foram dando lugar a escritórios e consultórios. Chegou ao ponto de hoje só ter sobrado ela morando no quarteirão. 

Vista de prédios de alto padrão na marginal Pinheiros, com bandeira do Brasil à frente pendurada na ponte Cidade Jardim
Prédios de alto padrão na marginal Pinheiros - Zanone Fraissat/Folhapress

Para piorar, estacionar na via hoje é proibido e as ruas que desembocam na Magalhães de Castro começaram a ser fechadas pelos moradores, assustados com a violência e as visitas de clientes em buscas de travestis e prostitutas que elegeram há anos a região como ponto de trabalho. 

"Estou ilhada. Se fizer uma festa em casa, por onde meus convidados virão? E onde irão parar, a cinco quarteirões?"

A cerca de 5 km dali, uma viela sem nome faz esquina com a mesma Magalhães de Castro. Ela marca o início da favela do Jardim Panorama. 

Dela pode-se ver a grama verde e recém-aparada que separa as pistas da marginal Pinheiros, os arranha-céus espelhados do lado de lá do rio e, virando o olhar para a esquerda e para trás, a um quarteirão, os luxuosos prédios do Parque Cidade Jardim —que têm entrada por uma rua transversal, e não pela marginal. 

Ali, uma cobertura de 1.980 m², 7 quartos, 12 banheiros e 12 vagas é oferecida por R$ 70 milhões --com condomínio de R$ 31.800.

Parado em frente a um bar na entrada da favela, o ajudante de pedreiro Daniel Carvalho, 36, observa o trânsito. Nada o incomoda em viver ali. "Daqui vou para qualquer lugar fácil de ônibus". Pernilongos? "Tem, mas não ligo", diz, dando de ombros. 

A prefeitura afirma que o controle de mosquitos ao longo de todo o canal e nas margens do rio Pinheiros é feito semanalmente e que 67 pontos de monitoramento são vistoriados. Em 2019, R$ 2.47 milhões foram investidos na compra do inseticida biológico que é utilizado no local.

Segundo a administração municipal, no rio Tietê, o leito com água corrente e margens canalizadas praticamente livres de vegetação não favorece a proliferação de mosquitos, "por isso não há ação programada de controle".

Sobre os ratos, a prefeitura afirma que "os trechos dos dois rios não têm altas infestações por roedores sinantrópicos e nem caracterizam-se como de risco para ocorrência de leptospirose". 

O controle nesses locais é feito de forma programada em áreas mapeadas e cadastradas pelas Unidades de Vigilância Sanitária e Coordenadoria de Vigilância em Saúde com risco para leptospirose.

A Secretaria Municipal das Subprefeituras afirma que realiza, de segunda a sábado, ações de zeladoria e prevenção para o período de chuva durante o ano todo, com reformas de galerias e bocas de lobo, além da limpeza de córregos, piscinões, galerias. 

O órgão também diz que faz a coleta adicional de resíduos sólidos domiciliares, antecipação das coletas de resíduos de varrição e coleta de pontos críticos e viciados.

Em agosto do ano passado, o governo do estado de São Paulo anunciou a intenção de diminuir pela metade os atuais índices de poluição do rio Pinheiros até 2022.

A expectativa do governo é de que seja investido R$ 1,5 bilhão no projeto --desde 1992, foram empregados cerca de R$ 2 bilhões em projetos na região. 

​O cheiro ruim que vem do rio incomoda o ajudante de pedreiro Daniel? "No verão é forte, mas não é só aqui", diz.

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