Descrição de chapéu A Cor da Desigualdade no Brasil

Leitores relatam como compreensão da própria cor mudou

Leituras, reflexões, opiniões externas e contexto socioeconômico levam a dúvida sobre como se declarar

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São Paulo

“Por muito tempo me declarei parda. Tenho a pele mais clara e cabelos lisos. Um dia, na escolinha de natação da minha filha, que é branca como o pai, uma mãe me perguntou se eu era a babá”, conta a professora Fabiana de Matos Barbosa, 42.

Segundo ela, que é de São Paulo, o evento foi um divisor de águas, acentuado por uma atitude racista que ela própria teve depois no mesmo local: “Pensei que uma mulher negra fosse da limpeza. Uma semana depois, me desculpei”.

Desde então, Fabiana passou a se considerar negra, definição que, oficialmente, abarca pretos e pardos.

O relato da professora foi um dos 38 que a Folha recebeu ao convidar leitores da série A Cor da Desigualdade no Brasil a responderem se já tiveram dúvidas sobre sua identidade étnico-racial.

A ideia da interação surgiu a partir de comentários de especialistas sobre o fato de que diferentes formas como a população interpreta sua cor podem influenciar, em alguma medida, comparações entre os resultados do Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial) em diferentes estados.

Alguns pesquisadores afirmaram que no Norte não é incomum que indígenas se declarem pardos. Outros ressaltaram a tendência recente de que mais brasileiros se denominem negros.

De fato, 24 dos 38 leitores –60% do total– relataram insegurança sobre identidade ou dificuldades de inserção social relacionadas à cor.

“Ter dúvidas sobre minha raça/cor é uma constante. Hoje, após anos de leitura e discussões sobre as relações raciais no Brasil, opto por me declarar pardo”, diz o professor Eduardo Pereira Santos, 46, de Salvador (Bahia).

“Mas sinto que esse termo ainda se insere numa tentativa de dividir o povo negro, uma espécie de branqueamento; isso omite ainda minha ascendência indígena”, afirma ele. Por dúvidas como essa, outros 20 leitores alteraram a forma como declaram sua cor ou raça.

Em nenhuma das situações houve menção à troca para indígena ou amarelo: todos os casos envolveram classificações de branco, pardo e preto.

O engenheiro Gustavo Pagiossi Salvador, 34, por exemplo, transitou de branco –como era “lido” socialmente– para pardo e, depois, preto.

“Meu pai tem a pele preta, mas não retinta. Os avós dele foram escravizados. Minha mãe é branca, filha de italianos. Eu tenho a pele parda”. Ao se informar e valorizar os traços, mudou seu cadastro, ciente, porém, de nunca ter sido alvo de racismo.

Embora o tema do preconceito não tenha sido mencionado nas perguntas, além de Gustavo 19 leitores o mencionaram, sempre em associação às cores parda e preta.

A analista Carla Vitor, 49, cresceu acreditando ser branca, mas, com os anos, percebeu que seu cabelo encaracolado e sua cor da pele “causavam incômodo em algumas pessoas”. “Isso ganhou força em um local em que trabalhei, porque ouvi coisas como ‘Quem essa neguinha pensa que é?’.” Em 2017, passou a se declarar parda.

Foi também a interferência externa que desencadeou dúvidas em Alice Araújo, 18. “Fui chamada carinhosamente de ‘neguinha’ por uma amiga da família”, conta. Alice diz que nasceu branca –ou, como ela própria ressalta, com pele clara– e loira, como sua família materna. Mas seu pai é “mestiço negro”.

A maioria dos depoimentos é de São Paulo, mas, além do de Alice, que é de Caldeirão Grande do Piauí, chegaram relatos de Minas Gerais, Distrito Federal, Santa Catarina, Paraíba, Rio de Janeiro, Rondônia, Espírito Santo, Maranhão, Rio Grande do Sul, Bahia, Alagoas e Sergipe.

“Sou adotado e, quando mais novo, me considerava branco. Como muitas crianças pardas, meus traços começaram a se manifestar um pouco mais tarde: cabelo ficando cacheado, estrutura facial mudando”, conta Luan Gabriel Oliveira, 20.

Isso o levou a apelar para cortes e alisamentos, até que, por volta dos 15 anos, começou a ter consciência sobre raça. “[Percebi que] várias situações eram racismo: o segurança me seguindo na loja, a senhora que segura a bolsa ao passar ao meu lado”.

Apesar de não ter conhecido os pais biológicos, o estudante hoje se reconhece como pardo, o que, no Brasil, diz ele, é ser alvo de exclusão.

Enquanto Luan –que é de Alagoas–, Carla e Alice relataram o racismo, outros narraram a dificuldade em ter seus traços negros reconhecidos.

Fabio Paiva Reis, 35, foi recusado em banca de avaliação fenotípica para uma vaga de professor de História do Instituto Federal do Maranhão destinada a pardos e pretos. “Eu me candidatei porque sempre me reconheci como pardo”, afirma.

“Com um avô preto e um pai pardo, sempre fui o ‘neguinho’ da família. Fiquei chocado como um grupo pode desfazer a identidade de alguém”, conta ele, que tenta reverter a decisão na Justiça.

Gabriel Sousa Araújo, 26, analista de investimentos, nasceu no Jardim Angela, o distrito mais negro da capital paulista, e nunca havia se identificado como preto, já que tinha a tez era mais clara que a de grande parte daqueles com quem convivia.

Ao mesmo tempo, afirma ele, “um filho de operários de origem nordestina não é um menino branco”.

Com 11 anos, se mudou com os pais para Mogi Guaçu (SP), onde a população é composta majoritariamente por descendentes de italianos. “Descobri que minha tez clara já não era tão clara assim, e o apelido que ganhei e permaneceu ao longo dos anos foi ‘preto’.”

“Após muitas reflexões e leituras de Lélia Gonzalez, me leio como negro, mas não me sinto à vontade para utilizar cotas raciais. Sei que, devido aos meus traços fenotípicos, diversas vezes sou lido como ‘branco’ e escapo de muita discriminação.”

Apoio

Esta reportagem faz parte de uma série que resultou do programa Laboratórios de Jornalismo de Soluções da Fundación Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o uso do jornalismo de soluções na América Latina.

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