Descrição de chapéu Folhajus

Da favela ao Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira luta por uma Justiça antirracista

Combate à letalidade policial é uma das bandeiras do secretário de Acesso à Justiça

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São Paulo

Marivaldo Pereira estava no cursinho pré-vestibular quando decidiu tentar a Faculdade de Direito da USP, porque achava que, com essa graduação, poderia ajudar a transformar a sociedade.

Era o final dos anos 1990, e Marivaldo havia estudado a vida inteira em escola pública. Sua simples pretensão de entrar em uma das melhores universidades do país soava quase como um acinte para certas pessoas.

"Vai tentar a USP? Esquece, compra um jeans que é mais vantajoso", ouviu de um professor.

Ouviu, mas ignorou. Entrou na USP em 1999, um dos únicos negros entre os mais de 400 alunos. Formou-se em 2003, fez mestrado na mesma instituição e, aos 43 anos, assumiu a recém-criada Secretaria de Acesso à Justiça no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Homem negro de terno, sem gravata, de perfil
Marivaldo Pereira, secretário de Acesso à Justiça - Gabriela Biló/Folhapress

Recebeu o convite do ministro Flávio Dino (Justiça) em dezembro, após ter sido o relator do grupo de trabalho de segurança pública durante a transição, sob coordenação do próprio Dino.

"O ministro tem uma preocupação muito grande com a pauta de enfrentamento do racismo e nos trouxe para cá pedindo que a gente focasse nesse debate dentro do sistema de Justiça", afirma Marivaldo.

Uma de suas bandeiras é a redução da violência como um todo e o combate à letalidade policial em particular. "Isso é central para a juventude negra", diz o secretário, que pretende firmar parcerias com os ministérios dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial, assim como com a Secretaria Nacional de Segurança Pública.

O 16º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado em julho de 2022, mostrou que os negros foram vítimas em 78% das mortes violentas intencionais —homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial.

O mesmo documento também registrou que, enquanto número de pessoas brancas mortas por policiais civis e militares caiu quase 31%, o de pessoas negras cresceu quase 6%.

A ideia de Marivaldo é incentivar políticas públicas que tenham impacto na redução dos homicídios no país. Como exemplo de controle da letalidade provocada por policiais, cita GPS nas viaturas e, sobretudo, a câmera no uniforme –experiência que, em São Paulo, levou a uma redução de 85% nas mortes em supostos confrontos.

"Os bons resultados têm inibido até pessoas que insinuaram se colocar contra as câmeras. Porque a própria polícia é favorável. Quando você tem a câmera no fardamento, o policial está muito mais resguardo. Ele tem como provar tudo aquilo que ele está relatando", diz o secretário.

O novo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou durante a campanha que tiraria as câmeras se fosse eleito, mas depois recuou.

Na avaliação de Marivaldo, é preciso recuperar a confiança da população no Estado, depois de um período de governo Jair Bolsonaro (PL) que ele classifica como de desmonte de políticas públicas em todas as áreas.

"O que eu mais tenho escutado quando converso com outras instituições é: ‘Que bom que agora a gente tem um Executivo para dialogar", diz o secretário, cuja função envolve conversar com órgãos da máquina pública e com os mais diversos movimentos sociais.

Uma de suas iniciativas que demandam mais diálogo é a mediação de conflitos fundiários urbanos e rurais coletivos. A proposta é criar mecanismos capazes de articular saídas para disputas de propriedade, a fim de, sempre que possível, evitar despejos de quem vive em situação precária.

Essa é uma realidade que Marivaldo conhece bem. Nascido em Brasília, mudou-se para São Paulo com quatro anos. Morou primeiro em um barraco de madeira num terreno em Pirituba, na periferia da cidade, e só aos oito anos dormiu num teto de alvenaria, no Jaraguá, bairro também periférico.

A partir de então, foi criado apenas pela mãe, que trabalhou como diarista para sustentar os quatro filhos e garantir que conseguissem estudar —todos concluíram o ensino superior.

Para entrar na faculdade, Marivaldo frequentou o Cursinho da Poli, voltado para alunos mais pobres. Estudava à noite, porque trabalhava das 6h às 15h para ajudar em casa –como fazia desde os nove anos.

Vestindo uma camisa na qual se lia "100% favela", Marivaldo envolveu-se com a política estudantil e assessorou movimentos de moradia. Quando se formou, tentou a iniciativa privada, mas não deu certo.

Voltou para Brasília em 2005, a convite do advogado Pierpaolo Bottini, então secretário da Reforma do Judiciário. Nos primeiros governos Lula, cuidou do Departamento de Política Judiciária, depois da sub-chefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e da própria Secretaria Nacional da Reforma o Judiciário.

Depois, com Dilma Rousseff (PT) presidente, foi secretário de Assuntos Legislativos e secretário-executivo do Ministério da Justiça.

Por ter trabalhado no Palácio do Planalto, ficou triste com a destruição provocada por apoiadores de Bolsonaro no dia 8 de janeiro. "Foi uma selvageria o que aconteceu ali", define.

Quando os ataques começaram, Marivaldo saiu de casa e foi para a Esplanada dos Ministérios ver com os próprios olhos o que estava acontecendo e tentar filmar alguma coisa, para ajudar na identificação dos criminosos.

"Tive um pouco receio de ser reconhecido, porque fui candidato duas vezes aqui no Distrito Federal", afirma o secretário, que não se elegeu senador em 2018 nem deputado em 2022, ambas as vezes concorrendo pelo PSOL, partido ao qual é filiado.

"Senti também um temor muito grande pela democracia", diz. "A leitura que eu faço é que não dá para baixar a guarda."

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