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'Faz o L': deboche após atropelamento é agravante e compromete defesa, dizem especialistas

Caso de motorista que atingiu jovem que supostamente furtava celular foi registrado como acidente de trânsito com morte suspeita

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São Paulo

Na última terça (25), um motorista de aplicativo atropelou e matou um homem suspeito de cometer um crime de furto de celular. O motorista Christopher Rodrigues, 27, publicou em suas redes sociais o atropelamento e debochou: "Menos um fazendo o L".

Segundo Rodrigues, a vítima, identificada como Matheus Campos da Silva, 21, teria furtado o celular de um outro passageiro à frente, por volta das 17h30, na ligação Leste-Oeste de São Paulo.

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Vídeos mostram Christopher Rodrigues debochando de vítima de atropelamento - Reprodução

Rodrigues não prestou socorro à vítima. Em depoimento no 5º DP (Liberdade), afirmou se arrepender das publicações e que o atropelamento foi um acidente causado por não conseguir frear o veículo ao avistar a vítima cruzando a via. Ele também disse ter prestado socorro, segundo a polícia.

A versão difere da apresentada nas redes sociais. Em um dos registros, o atropelador diz que, mesmo após pedidos de transeuntes, dentre eles os "direitos humanos", não tiraria seu veículo de cima do jovem. "Não posso tirar o carro, né? Senão o cara foge", ironizou. Em outro trecho, declarou: "É o ladrão de celular. Ladrão, foda-se. Talvez eu encontre esse vagabundo em outra vida".

A polícia não respondeu se o homem apresentou advogado, informação não presente no boletim de ocorrência. Via redes sociais, a reportagem tentou contato com Christopher entre a noite deste domingo (30) e a tarde desta segunda-feira (1°), mas não houve resposta.

Para especialistas, mesmo que ele tivesse alegado que atropelou a vítima para proteger a si mesmo ou outra pessoa de um furto, o excesso da ação e o deboche comprometeriam a versão.

O que diz o Código Penal sobre legítima defesa?

A legítima defesa, ou excludente de ilicitude, está prevista nos artigos 23 a 25 do Código Penal. De acordo com Roselle Soglio, advogada criminalista especialista em perícias criminais, cabe o argumento da legítima defesa quando uma pessoa faz uso de forma moderada para repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

"Neste sentido, o caso não parece ser de legítima defesa porque, apesar de ter sido feito em relação a um possível assalto, havia outros meios de repelir a injusta agressão com meios mais moderados, desde ligar à polícia e informar o crime até usar de outro meio para evitar que aquela pessoa provocasse o assalto", diz.

Soglio ressalta que no Código Penal não há distinção quanto ao objeto da legítima defesa, ou seja, ele pode ser alegado tanto contra a vida, o patrimônio ou bem pessoal. "Cabe ao delegado analisar em quais situações a legítima defesa, que é praticar um ato ilegal sem a punição prevista em lei, para proteger um bem ou vida", afirma.

Qual a diferença de homicídio culposo e doloso?

Um crime é doloso quando é intencional (chamado de dolo direto) ou quando o autor assumiu o risco de produzir o resultado (dolo eventual).

Já o homicídio culposo é quando o indivíduo age por imprudência, negligência ou imperícia, ou, em outras palavras, não desejou o resultado nem assumir o risco.

No caso de acidentes de trânsito que resultam em morte, ele pode ser tanto doloso (por exemplo, quando um motorista embriagado assume o risco de provocar a morte de outras pessoas por abuso de álcool) quanto culposo (um acidente de trânsito por imprudência, por causas externas ou por consequência de um evento de força maior).

Para os casos em que o autor do crime alegou legítima defesa, não pode ser classificado como homicídio culposo, pois houve a intenção de provocar o ato ou assumiu-se o risco do resultado.

É possível alegar legítima defesa quando outra pessoa é atacada? Em quais circunstâncias?

De acordo com o Código Penal, a legítima defesa pode ser aplicada para terceiros. Porém, é preciso que a pessoa consiga provar que não houve nenhuma outra saída e aquele ato, ou seja, provocar a lesão corporal ou morte, era a única alternativa, explica Soglio. "Até que prove o contrário, não está autorizado agir de uma forma que pode ser considerada até mesmo com excesso", diz.

O caso foi classificado como acidente de trânsito com morte suspeita pela polícia. Isso pode mudar?

Sim. No caso de Rodrigues, o delegado entendeu que houve um acidente de trânsito com morte suspeita, mas a análise do que foi publicado posteriormente nas redes sociais e o tom com que o motorista tratou o caso podem agravar a sua intencionalidade, inclusive levando a uma denúncia diferente pelo Ministério Público.

Para Julyver Modesto de Araújo, mestre em direito e professor de legislação de trânsito, o acidente de trânsito com morte é caracterizado como homicídio culposo, mas o motorista do incidente deveria responder a um processo criminal como homicídio doloso. "Ele pode até não ser punido, e aí que vem a garantia dele de que será caracterizado como legítima defesa, mas ele vai responder de qualquer forma a um processo", afirma.

De acordo com o Código Penal, um homicídio doloso tem pena de 6 a 20 anos, enquanto um homicídio culposo tem pena de 1 a 3 anos. Já pelo Código de Trânsito Brasileiro um crime de homicídio doloso tem pena de 2 a 4 anos.

A advogada Soglio explica que o delegado é o responsável por fazer o indiciamento, e ele vai analisar as circunstâncias para verificar se houve ou não legítima defesa, mesmo havendo o dolo.

"É um agravante no sentido das palavras utilizadas, porque uma coisa seria dizer ‘hoje vi um assalto e aconteceu uma fatalidade’. Outra é zombar, e pior, ligar uma determinada ação a ato político, acaba misturando as coisas. Então vai muito também do magistrado entender o estado de ânimo da pessoa que provocou", afirma.

O que acontece com quem atropela um suposto ladrão?

Os órgãos de segurança recomendam que uma vítima de roubo não deve reagir.

Do ponto de vista estritamente jurídico, tanto Soglio quanto Araújo explicam que, no caso de um assalto, algumas ações da vítima podem ser consideradas como atenuantes no caso de uma lesão corporal grave ou de resultado com morte. Mas ressaltam que a interpretação vai depender do entendimento do juiz e da análise das provas.

"É preciso considerar a distância que o veículo estava do assaltante, se era o carro do proprietário ou a sua vida que estavam em jogo, se ele tinha ou não a percepção de que ia atropelar e matar alguém, se imaginou que só fosse machucar. E também o comportamento da pessoa após o ato, tudo isso é levado em consideração, junto com registros [imagens]", diz a advogada.

É importante diferenciar, porém, a legítima defesa do excesso de defesa, que pode ser punível. Neste caso, uma reação de atirar contra alguém para se proteger de um assalto pode ser legítima defesa, mas atirar várias vezes pode ser um excesso, explica Soglio.

Já Araújo acredita que existe o excludente de ilicitude para os casos de assalto ou violência e, embora a pessoa possa não ser punida, ela deve responder pelo crime de homicídio doloso.

"É importante ver o que diz o artigo 59 do Código Penal, sobre as circunstâncias, o comportamento e as consequências do crime, se a pessoa se arrependeu. No caso desta história que envolveu o motorista de aplicativo, ele não mostrou arrependimento, pelo contrário, então isso pode ser entendido como um agravante", completa Araújo.

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