Desde os primeiros tempos da colonização portuguesa, mulheres negras libertas e escravizadas carregavam na cabeça mercadorias dos tipos mais variados, de gêneros alimentícios (frutas, legumes, verduras, peixes e carnes) a panos da costa africana e utensílios, como xícaras, garrafas e até velas acesas.
Tudo posto em um grande lenço de renda, transformado da maneira mais elegante em um turbante para o comércio da cidade.
Essas mulheres eram chamadas de "ganhadeiras" e ocupavam um lugar de destaque no mercado de trabalho urbano com o comércio de rua chamado "ganho", um sistema no qual as ganhadeiras escravizadas eram obrigadas, mediante contrato informal, a dar ao senhor uma quantia previamente estabelecida do que fosse arrecadado.
O excedente era apropriado por elas, permitindo-lhes poupar o suficiente para comprar suas alforrias, importante recurso para a conquista da liberdade.
A maior autonomia com que desempenhavam suas atividades, passando boa parte do tempo longe das vistas do senhor, fez com o que poder público tentasse controlar essa população por meio das chamadas "posturas municipais", uma política de controle e vigilância que as colocava em estado de suspeição. Nesse sentido, eram tratadas como criminosas em potencial.
Data de 1631 a primeira postura municipal da Câmara da Cidade da Bahia (atual Salvador), determinando "que nenhuma mulher preta poderia vender qualquer coisa sem licença da Câmara, sob a pena de seis mil réis de multa".
E foi por meio das posturas municipais e da força policial que conhecemos a história de Eugênia, uma mulher sem sobrenome, uma entre as tantas "de Tal", que só tiveram suas existências reveladas a partir do encontro com o poder.
Eugênia era uma mulher negra, africana, escravizada, ganhadeira, solteira e tinha 36 anos em 1864, quando foi presa pela primeira vez. São essas as únicas informações que conseguimos obter a partir do seu registro de entrada na cadeia da Casa de Correção, instituição inaugurada em 1832 no forte de Santo Antônio Além do Carmo.
O que motivou sua prisão foi uma postura municipal de 1850 que dizia, em linhas gerais, que "todo africano que fosse encontrado à noite nas ruas sem bilhete de seu senhor em que declarasse aonde ia, o seu nome e procedência, seria multado em 1.000 réis ou quatro dias de prisão".
Eugênia era africana e foi encontrada às 22h na fonte do Gravatá, em companhia de outra ganhadeira, a também africana de nome Felicidade. Sob a ordem do chefe da polícia da capital, as duas foram conduzidas à Casa da Correção na mesma noite.
Eugênia não foi a única presa naquele ano –47 mulheres foram encarceradas pela mesma razão: querer viver de si para ser livre.
Diferentemente da escravidão praticada nos engenhos com jornadas de até 18 horas e rígido controle do senhor, a escravidão doméstica na casa grande e nas ruas das cidades também tinha jornadas extenuantes de trabalho, mas as relações eram mais fluidas pelo ir e vir das pessoas escravizadas. Isso não significa que essas relações fossem menos violentas porque o poder agia como um senhor.
Na topografia do espaço urbano, os lugares desempenham um papel essencial na construção das realidades e do imaginário social. Em Salvador, fontes, bicas e chafarizes eram locais onde homens e mulheres que trabalhavam nas ruas costumavam se encontrar para se refrescar sob o sol quente. Por isso, em 1801, o professor régio Luís dos Santos Vilhena comentou que a fonte do Gravatá era "a mais imunda e pior de todas".
Mas Eugênia foi encontrada à noite, não havia sol que justificasse o horário e o local suspeitos. Pelo local de sua prisão, podemos afirmar que ela provavelmente morava na Freguesia de Santana, núcleo urbano onde, de acordo com o censo de 1855, 50% das mulheres negras que ali habitavam tinham como ocupação o ganho.
Após ser solta, perdemos seu rastro por um ano, encontrando-a novamente em 1865, quando foi presa pela segunda vez. Talvez por estar visada nas redondezas de Santana, Eugênia saiu da cidade alta e foi para a cidade baixa. Na Freguesia da Conceição da Praia, local onde as casas comerciais e os grandes armazéns estavam instalados, foi presa por dirigir insultos à autoridade que queria prendê-la.
Na documentação, a história da africana escravizada Eugênia acaba quando perdemos seu rastro nos mapas de entrada e saída de presos da Casa da Correção. Para nós, essa história é a janela para a complexidade das relações escravistas no Brasil, as diversas formas de luta pela liberdade e os mecanismos de controle dessa população.
Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil
O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por algumas das mais importantes historiadoras e escritoras brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.
A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.
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