Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Negra Jacinta de Siqueira acumulou riqueza em cidade mineira no século 18

Ascensão econômica e social dela se deveu à mineração, à posse de escravos e ao concubinato com um juiz

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Junia Ferreira Furtado

Professora titular do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Belo Horizonte

A história da região diamantina, em Minas Gerais, esteve ligada às negras e mulatas forras (liberdade conquistada por meio de carta de alforria), como a famosa Chica da Silva. Mas houve outras.

Deve-se a uma delas o lugar escolhido para a Vila do Príncipe, hoje cidade do Serro. Isto ocorreu porque o pelourinho —monumento em pedra que, no período colonial, marcava o ato fundacional de uma vila e definia seu centro— foi mudado de lugar pelo juiz Antônio Quaresma para um novo sítio, onde se localiza até hoje, tudo "a instâncias de uma sua amiga negra, por nome Jacinta, que vivia naquele sítio com lavras suas".

Trata-se da negra forra Jacinta de Siqueira, uma das primeiras moradoras do local. Sua ascensão econômica e social se deveu à mineração, à posse de escravos e ao concubinato com o próprio juiz Quaresma.

Ilustração de Veridiana Scarpelli mostra retrato de Jacinta de Siqueira. Ela aparece da cintura para cima, usa uma roupa amarela com babados. É negra, os cabelos são volumosos e adornados com correntinhas e um medalhão amarelo, que sustenta duas penas. Usa brincos de argolas douradas e colares come bolinhas também douradas. Está olhando em direção ao leitor. Na mão direita usa uma luva branca e segura um leque de renda, abanando a face.
Jacinta de Siqueira, que viveu na Vila do Príncipe, hoje cidade do Serro - Veridiana Scarpelli

Ela nunca se casou, mas teve quatro filhas ilegítimas que, por sua vez, se casaram com homens brancos –na época, o principal mecanismo feminino de promoção social. Para tanto, Jacinta empregou parte de seus bens como dote das meninas, o que permitiu posicioná-las favoravelmente no mercado de casamentos, apagando o estigma da cor e da escravidão que herdaram.

Durante a vida, Jacinta acumulou vários bens móveis, imóveis e escravos, pecúlio que a inseriu na elite proprietária. Possuía lavras de ouro, uma fazenda, uma rocinha e a casa onde morava no centro da Vila do Príncipe.

Era dona de muitos escravos, o que hoje pode parecer contraditório. Na hora de sua morte, eram 27, número significativo para a sociedade mineradora que, em sua maioria, variava de 1 e 5. Eram empregados nas suas lavras de ouro e nas suas roças, e alugados aos contratadores de diamantes, que monopolizavam sua exploração.

Possuir escravos era a principal forma de subsistência e afirmação da liberdade em uma sociedade escravista. Como dito por várias negras forras, tudo foi adquirido com sua "agência e trabalho".

Chamam a atenção os móveis que compunham sua casa e que transpareciam o ambiente de luxo em que vivia, destoando da precariedade da vida que caracterizava a maioria das habitações. Tinha um catre de jacarandá torneado, adornado com seu cortinado e uma colcha de seda, onde podia dormir confortavelmente entre lençóis e fronhas de linho.

Para expressar a fé católica, possuía dois oratórios com várias imagens de santos adornados com suas coroas de ouro e prata. Sua mesa era posta com garfos e colheres de prata, louças da Índia, toalhas de mesa e guardanapos de renda e linho. O paladar de seus convivas era satisfeito com o fino chocolate derretido em sua chocolateira, pão de ló feito em bacias e licores e sucos servidos em garrafas e copos de cristal.

A negra Jacinta, apesar de analfabeta, reuniu nas paredes de sua casa todos os objetos que permitiam sua inserção na cultura branca, assumindo seus hábitos e crenças, e portando-se como uma Dona, como eram tratadas as mulheres brancas, o que a distanciou cada vez mais do mundo da senzala onde nasceu.

Mas não se esqueceu totalmente de suas origens. Fazia parte da Irmandade do Rosário, que congregava os negros da Vila, deixando-lhe em seu testamento 34 oitavas de ouro —cada oitava equivalia a 1.200 réis, o que não era pouco para a época.

Ao morrer, em abril de 1751, ela destinou várias esmolas para a celebração de missas que garantiriam a ascensão da sua alma e as dos seus ao paraíso. Para si, encomendou 65 missas, sendo 15 em devoção de Santo Antônio; 10 para as almas no purgatório; outras 10 para sua filha Vitória Pereira; e mais 10 para o juiz Quaresma, já falecidos.

A preocupação com ele revela a relação que teceram em vida, de quem as meninas eram provavelmente filhas ilegítimas. Na morte, Jacinta reafirmava os laços sociais e familiares mais importantes que havia construído em vida.

A pompa de seu enterro foi o último momento em que deixou clara a ascensão social que alcançara em vida. Seu corpo foi amortalhado com o hábito de São Francisco, enterrado na Igreja Matriz, acompanhado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e da Irmandade das Almas, a mais importante e que reunia os brancos livres, e uma missa de corpo presente foi rezada.

Apesar de hierárquico, o mundo colonial abriu brechas por meio das quais alguns de baixo nascimento, inclusive mulheres e escravas, puderam melhorar a vida e a condição impostas pelo nascimento. Jacinta de Siqueira, mulher negra, é exemplar neste sentido, mas não se pode dizer que seu status se igualava ao dos brancos, pois havia limites aos espaços e à ascensão social que cada um podia alcançar.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por algumas das mais importantes historiadoras e escritoras brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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