Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Africana Anna Maria libertou toda sua família da escravidão na Salvador do século 18

Escravizada desde bebê, ela lutou por décadas pela sua alforria e a de sua descendência negociando com sua senhora

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Raiza Canuta

Doutoranda do programa de pós-graduação em história na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Salvador

A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos foi a capital da América Portuguesa de 1549 até 1763, e era considerada a segunda cidade do Império português, tendo à sua frente apenas Lisboa. Uma das maiores cidades exportadoras de açúcar e de fumo da colônia, Salvador possuía completa dependência do mercado de mão de obra escravizada africana e foi um dos principais portos de desembarque de cativos em todo período colonial.

De acordo com um levantamento populacional de 1775, dos 32.253 habitantes de Salvador, 36% eram brancos; e a população de cor representava nada menos do que 64% dos moradores da cidade. Destes, 4.207 eram mulatos livres (12%), 3.630 negros livres (10,4%), e 14.696 eram negros e mulatos escravizados (41%). Para o viajante francês Freziér, Salvador parecia uma "Nova Guiné" no final do século 18.

Sobre um fundo azul, ilustração de Mariana Waechter mostra uma mulher negra. Ela está de frente para cena, bem no meio do quadro horizontal, e aparece do peito para cima. Usa uma camisa branca, com decote canoa. No pescoço, um colar de bolinhas marrons, usa brincos de argolas e, na cabeça, um turbante listrado. Olha fixamente para o leitor. Sua expressão é de serenidade, com uma força no olhar.
Anna Maria foi escravizada enquanto ainda mamava, e trabalhou na mesma casa na Salvador do século 18 até garantir a própria alforria e a de suas filhas - Mariana Waechter/Folhapress

Entre as milhares de trajetórias de africanas que circulavam cotidianamente pela cidade, encontramos Anna Maria, preta da Costa da Mina, mãe de Maria Joaquina, de dois anos, e de Inácia, de doze meses. Anna Maria nasceu na Costa da Mina e foi escravizada ainda "mamando" por Elena Soares Garcez, quando foi trazida do continente africano através do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas.

Sua Carta de Alforria, registrada em cartório em 1759, informa que, depois de passar décadas "servindo e atendendo" à sua senhora, Anna Maria pagou 128 mil réis (o equivalente a 16 mil reais) por sua liberdade e a de suas filhas. Esse documento legal demonstra a preocupação das africanas mães escravizadas em libertar seus filhos do cativeiro por meio da micropolítica das negociações com senhores e senhoras.

No entanto, o caminho para a compra da liberdade não envolvia apenas o dinheiro pago, pois do conjunto de 1.118 pessoas alforriadas localizadas na cidade de Salvador entre os anos de 1751 e 1766, 93 tiveram suas alforrias justificadas pelos bons serviços de suas mães libertas.

Obra do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) ilustra a preparação da farinha de mandioca por escravizados - Reprodução

É o caso da crioula liberta Simoa, que pagou pela liberdade do filho Manoel à senhora Joana, cuja Carta de Alforria foi registrada em 14 de julho de 1765. Mesmo recebendo dinheiro pela liberdade de Manoel, a senhora justificou a alforria por considerá-lo "como filho" e pelos "bons serviços que de sua mãe tenho recebido ainda depois de liberta até o presente".

Tais elementos evidenciam a dimensão produtiva e reprodutiva do trabalho das mulheres escravizadas, que se dava de modo concomitante e incessante mesmo depois de libertas. Evidenciam também o protagonismo dessas mulheres na empreitada da conquista da liberdade dos filhos. As mães libertas tinham que negociar cotidianamente com os proprietários, cuidar dos rebentos, conseguir os valores para pagamento da carta ou consegui-los através de pais, padrinhos ou outros benfeitores ou credores, além de prestar bons serviços aos senhores, condição determinante para o sucesso da empreitada, que poderia durar anos.

O histórico acúmulo de jornadas de trabalho a que as mulheres sempre foram submetidas na sociedade patriarcal brasileira engloba o trabalho na rua e o doméstico, com o sobrepeso das atividades impostas pela economia do cuidado, que secularmente impõe às mulheres as tarefas reprodutivas e maternais com os bebês, crianças, doentes e idosos, bem como com o asseio dos ambientes, preparo de alimentos e a gestão dos lares.

Isso fica evidente quando a classe senhorial aproveitava a dimensão subjetiva da luta pela liberdade dos filhos para transformar a maternidade das mães libertas em um dispositivo de poder que mantinha essa mulher ligada à família de senhores, garantindo a reprodução do trabalho doméstico até que seus filhos fossem libertos. Afinal, como estar liberta e sentir-se livre com os filhos ainda em cativeiro?

No contexto escravista da Salvador do século 18, Anna Maria e suas filhas tiveram "mais sorte" que Simoa e seu filho Manoel. A luta dessas mulheres evidencia a complexidade das negociações pela liberdade entre escravistas e escravizadas, além de escancarar a truculência da escravidão, que não poupava sequer recém-nascidos e crianças, mantendo-as ainda ligadas ao cativeiro mesmo depois de libertas.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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