Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Luzia da Silva transformou o sofrimento da tortura em resistência no século 18

Acusada de feitiçaria, escravizada provou sua inocência diante dos inquisidores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Laura de Mello e Souza

Professora aposentada do departamento de história da USP e da cátedra de história do Brasil da Sorbonne, em Paris

São Paulo

A escravizada Luzia da Silva Soares nasceu por volta de 1702 num lugarejo próximo a Olinda. A cidade fora até então o centro urbano mais importante da capitania de Pernambuco, mas já se via ameaçada por Recife, que o intenso comércio trazido pela ocupação holandesa do Nordeste (1630-1654) transformara num porto ativo.

Luzia viera ao mundo no engenho de um João Soares, onde também vivia sua mãe. O senhor, contudo, perdeu a escravaria no jogo e procurou diminuir o prejuízo valendo-se da ascensão vertiginosa da região aurífera, que começara a ser explorada no finalzinho do século 17: ainda pequenina, Luzia foi vendida para as Minas, onde passou a viver em casa de Maria Gomes, que se apegou a ela como a uma filha.

Ilustração de Mariana Waechter mostra uma mulher retratada da cintura para cima. Ela é negra, veste um turbante vermelho, camisa branca e um chale azul enrolado no braço direito. Ocupa a área central da tela e está ligeiramente virada para a esquerda, com o olhar voltado para o leitor. Usa um colar longo, de peças redondas em tom de marrom, e um outro de búzios, colado ao pescoço. Nas orelhas, grandes argolas douradas. O cenário amarelo, ao fundo, traz casarões desenhados com contornos de lápis.
Escravizada no século 18, Luzia foi acusada de feitiçaria pela Igreja Católica e submetida a sucessivas práticas de tortura; ao fim, resistiu e sustentou sua inocência - Mariana Waechter/Folhapress

Escravizados, contudo, eram propriedade negociável, e a menina pertenceu sucessivamente a outros donos, deslocando-se entre as imediações de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo. Apesar da violência inerente a sua condição, conservou lembranças de uma vida tranquila até que, morto seu senhor, Manuel da Silva Preto, o destino a levasse para a casa de um irmão do defunto, o sargento-mor José da Silva, que a cedeu ao genro, Domingos de Carvalho.

Difícil acompanhar tantas mudanças, e até as anotações dos documentos se atordoam, ora atribuindo-a a um senhor, ora a outro.

Luzia saiu do anonimato e entrou para a nossa história porque foi acusada de feitiçaria pelo Juízo Eclesiástico, que encaminhou o caso ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa.

Passando de dono em dono desde a tenra infância, aprendeu a se defender das agruras cotidianas por meio de práticas trazidas da África com os escravizados, e que ela, nascida no Nordeste e falante de português, deve ter aprendido nas Minas, onde levas de novos cativos chegavam sem cessar.

O que ficou registrado do embate entre Luzia e a Inquisição revela, por um lado, o medo dos senhores ante costumes e saberes que temiam porque os desconheciam, vendo-se ainda acossados ante uma população africana cada vez mais numerosa; por outro, ilustra a reação possível dos cativos contra a iniquidade da escravidão, para tanto recorrendo, se necessário, a meios extremos.

As primeiras acusações contra Luzia remontam a 1738: desejando castigá-la, Josefa Maria, sua senhora, dirigiu-se à senzala, mas não conseguiu abrir a porta porque lhe sobreveio uma forte dor no braço.

Tinha assim início uma sucessão de ocorrências extraordinárias, todas imputadas à ação maléfica de Luzia: na sua presença, a senhora se via acometida por terríveis enxaquecas; quando a escrava punha água para ferver, a boca da senhora também fervia, e se tomava do chinelo para castigá-la, o braço ficava inerte.

Num crescendo, as suspeitas descambaram para supostos atos de infanticídio, e surgiram acusações de que sugara um dos recém-nascidos da casa e ocasionara sua morte.

Transformada em borboleta, como bruxa que seria, entraria na casa pelas frestas da janela, sempre no intuito de provocar o mal. Pelos caminhos e encruzilhadas, enterraria bonecos espetados por agulhas, sapos e outros bichos considerados repulsivos. Para culminar, Josefa Maria acusava Luzia de dormir com seu marido.

A descrição das torturas infligidas a Luzia, anotadas ainda em Minas pelo Juízo Eclesiástico, são difíceis de suportar. Aplicaram-lhe tenazes de ferro em brasa sobre o corpo nu, costuraram-lhe a língua com linha grossa, ataram-na a uma escada e lhe atearam fogo aos pés, quebrando seus dedos, e também os das mãos, fazendo dela uma réplica negra do Cristo.

Conforme multiplicavam-se os suplícios, ela confessava tudo quanto quisessem, o fundamental sendo a adesão ao diabo por meio do pacto: por configurar crime de feitiçaria e ser também considerado heresia, o delito pertencia à alçada do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, e para lá enviaram Luzia, que chegou à Corte no dia 18 de dezembro de 1742.

Iniciados os interrogatórios, Luzia negou tudo, e ocorreu o mais surpreendente. Os inquisidores notaram que as primeiras confissões haviam sido tomadas pelo padre José de Andrade, tio da senhora de Luzia, e determinaram que, ao longo de 1744, se reinquirissem as testemunhas que haviam deposto em Minas. Muitas confirmaram a inocência que a escravizada passara a sustentar em Lisboa, pois ali não a torturaram.

Em maio de 1745, o Santo Ofício encerrou o processo com um despacho e pôs em liberdade uma cativa, desafiando o poder senhorial. Não porque fosse um tribunal magnânimo ou justo, e sim porque, mais verossimilmente, não aprovasse que a coerção sobre questões de crença fosse exercida por outro braço que o seu.

Mesmo assim, transparece no processo o desconforto dos inquisidores ante torturas sádicas e desordenadas, discrepantes da lógica própria à Inquisição.

Uma vez fora da alçada do poder senhorial, do eclesiástico e do inquisitorial, perde-se o rastro de Luzia da Silva Soares, escravizada que resistiu com os meios a seu alcance e procurou sustentar sua inocência.

Pelo processo fica evidente que, aos 40 anos, era uma mulher destruída pelo sofrimento. É uma entre tantas vítimas da iniquidade escravista, e sua saga está inscrita no rol das injustiças que vitimaram e vitimam o povo brasileiro. Por isso, ela fez história.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.