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Hawk Andrade

Pessoas com deficiência não existem (ou só fazemos um ótimo trabalho para ignorá-las?)

Cresci vendo televisão, mas nunca me vi nela; não ouso nem dizer que sou exceção

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Hawk Andrade

É comunicador e criador de conteúdo. Vencedor do prêmio "escolha do ano" pelo Youtube Vozes Negras, acumula quase meio milhão de seguidores nas redes sociais, onde incentiva a realização de ações humanitárias pelo Brasil.

Neste mês, temos o Setembro Amarelo, com campanha sobre a prevenção do suicídio e discussões sobre o adoecimento mental. Você deve ter ouvido falar sobre isso em algum lugar. Também "comemoramos" o setembro verde, que deveria abordar a inclusão da pessoa com deficiência, mas desse aqui você nunca ouviu falar, né? Tá tudo bem! Pessoas com deficiência não existem. Ou só estamos fazendo um ótimo trabalho para ignorá-las?

Nasci e me criei no interior do interior da Bahia, cidadezinha que luta para ultrapassar a barreira de 50 mil habitantes desde que me entendo por gente. Estreei nesta existência com uma deficiência física de nome complicado, a artrogripose. Mesmo nunca tendo participado do mundo bípede, demorei para entender que era uma pessoa com deficiência.

Homem cadeirante testa rampa de esporte radical - Ze Carlos Barretta - 13.abr.2012/Folhapress

Na minha cabeça, eu só era incrivelmente diferente de todas as outras pessoas. Mas será que eu realmente era uma pessoa? Raramente me tratavam como uma. Cresci vendo televisão, mas nunca me vi nela. As aparições eram raríssimas e, em 99% das vezes em que apareciam pessoas com deficiência, era ocupando uma posição que não parecia ser digna de um ser humano.

Os apelidos dados a colegas na escola geralmente eram relacionados com alguma celebridade com quem o sujeito era parecido. Para mim, sobravam os monstros humanoides. Nunca existi.

Faz um exercício mental comigo: quantas pessoas com deficiência você já viu numa capa de revista? Quantas você viu no cinema beijando a mocinha? Quantas planejam aposentadoria? Quantas estão aqui neste jornal, escrevendo? Agora, quantas você já viu em uma vakinha online para custear um tratamento? E quantas pedindo dinheiro pela rua? Sei bem para quais perguntas você respondeu: "mais de um".

Segundo pesquisa divulgada pelo IBGE em julho, estima-se que existam 18,6 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, dessas, só 26% conseguem entrar no mercado de trabalho, enquanto 19% seguem analfabetas.

Exatamente isso que você acabou de ler: de cada 10 pessoas com deficiência, menos de 3 conseguem se sustentar pelo fruto do seu trabalho. A estatística é tão baixa que não ouso dizer que sou exceção, sou uma anomalia sistemática, um organismo que se espreme aqui e ali pra alcançar a superfície antes que me joguem a última pá de terra.

Se existíssemos, diria que é urgente a criação e manutenção dos espaços. Chega de falar de rampas. Nem essas vocês conseguem fazer direito. A carência é de investimento e oportunidade de verdade, mas, até lá, continuaremos não existindo. Seguimos sem nem sequer vislumbrar a existência.

Fui convidado a escrever hoje, e faço da minha aparição um relâmpago de luz que amanhã já não se verá. Fico apenas na torcida para que o som que vier depois de mim faça muito barulho.

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