Lula veta marco temporal e sanciona apenas um terço do projeto

Base pedia que todo o texto fosse barrado, mas governo fez opção parcial; ruralistas articulam derrubar mudanças

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Brasília

O presidente Lula (PT) decidiu nesta sexta-feira (20) vetar parcialmente o projeto do marco temporal de terras indígenas. Os trechos mais polêmicos ficaram de fora da proposta, que agora será analisada pelo Congresso.

Entre os pontos barrados está o cerne da proposta, que prevê que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos originários já na época da promulgação da Constituição, em 1988. Pelo trecho, os indígenas que não estavam nas áreas até a data não teriam direito de reivindicá-las.

De acordo com o governo, os principais jabutis foram retirados e apenas um terço da proposta continua valendo. Apesar disso, o conjunto final foi criticado tanto por ruralistas como por ambientalistas.

Indígenas em protesto contra o marco temporal, em Brasília. - André Borges -21.set.2023/EPA

Entre os principais vetos está o polêmico artigo que previa que atuais ocupantes dos territórios teriam direito a indenização por benfeitorias (como construções de edificações e fazendas, por exemplo) caso a área passasse a ser uma terra indígena. Também foi barrada a liberação do cultivo de transgênicos nessas áreas.

O governo usou todo o prazo disponível para a decisão, que se encerrava nesta sexta. O anúncio dos vetos foi feito a jornalistas após reunião dos ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e Jorge Messias (AGU) com o presidente no Palácio da Alvorada.

O chefe do Executivo vinha sendo pressionado por sua base para um veto integral à proposta, como foi, inclusive, solicitado pelo ministério de Guajajara. Mas, durante a tarde, ela anunciou que recuou da decisão e está de acordo com o que foi decidido pelo Planalto.

"Inicialmente, o Ministério dos Povos Indígenas apresentou a recomendação para o veto total, algo que foi apresentado à Presidência. Posteriormente, fizemos análise minuciosa em articulação com outros ministérios, como AGU, Secretaria de Relações Institucionais, e conseguimos ali olhar os artigos que já estão garantidos na Constituição Federal, e, portanto, poderiam estar ali preservados", disse a ministra.

"O importante é que podemos considerar uma grande vitória os vetos do presidente, de reafirmar a decisão do STF, garantir essa coerência do governo com agenda indígena, ambiental internacional e vetar o marco temporal. [...] Tudo que é essencial ao direito dos indígenas está assegurado no veto do presidente", completou.

Entre os demais pontos vetados estão os artigos que flexibilizam a exploração de recursos naturais e a realização de empreendimentos dentro de terras indígenas por terceiros. Ambientalistas e o movimento indígena viam brechas para permitir atividades como garimpo, atividade agropecuária, abertura de rodovias, linhas de transmissão de energia ou instalação de hidrelétricas —além de contratos com a iniciativa privada e não indígenas para os empreendimentos.

Entretanto, permaneceu o trecho que libera os indígenas, caso queiram, para contratarem pessoas para trabalhar em suas terras.

O governo também vetou o artigo que dava aval para o contato com povos isolados para "prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública".

Também foi retirado o trecho que abre brecha para que terras demarcadas sejam retomadas pela União "em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo".

Os vetos do marco temporal demandaram especial atenção do governo Lula, que tem buscado apoio do Congresso —em grande parte dominado pela força dos ruralistas, que defendem o marco— enquanto busca defender a pauta indígena.

Lula, inclusive, inovou em seu governo ao criar o Ministério dos Povos Indígenas e subiu a rampa em 1º de janeiro ao lado do cacique Raoni, numa demonstração de que seu governo respeitaria a diversidade.

Por isso, interlocutores de Lula apontaram que o governo teve de fazer um cálculo político. Na balança, pesaram os diferentes entendimentos de seus apoiadores à esquerda e dos ruralistas no Congresso, que integram a mais forte bancada das Casas.

O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em maio com apoio da bancada ruralista e do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), como parte da ofensiva do Congresso contra o STF (Supremo Tribunal Federal) em meio a uma disputa de poderes em torno do assunto.

O Congresso aprovou a proposta no fim de setembro, em reação à decisão do STF de declarar inconstitucional a tese do marco.

Messias, da AGU, disse que a decisão de Lula garante a separação entre os poderes, por decidir vetar "todos os temas que colidiam com o entendimento do STF".

Os parlamentares, que dão a palavra final sobre a proposta e podem derrubar um ou mais vetos de Lula, já reagiram.

A Frente Parlamentar da Agropecuária disse, por nota, que os vetos do governo serão derrubados em sessão do Congresso Nacional. Segundo a bancada, constituída por 303 deputados federais e 50 senadores, há votos suficientes para que isso ocorra.

"A FPA não assistirá de braços cruzados a ineficiência do estado Brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo. Buscaremos a regulamentação de todas as questões que afetam esse direito no local adequado, no Congresso Nacional", disse, em nota.

Ambientalistas também criticaram o Planalto. O porta-voz do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar, disse que Lula "perdeu uma excelente oportunidade de colocar em prática o que afirmou durante a COP do Egito".

"Na ocasião, ele assinalou de maneira clara que o Brasil se juntaria aos esforços globais para a construção de um planeta mais saudável e justo. Na prática, o veto parcial do PL 2903 vai na contramão do compromisso assumido com o mundo", afirmou, em nota.

Na avaliação do porta-voz, o petista deveria ter vetado integralmente o texto. Segundo Aguiar, com o veto parcial, Lula "atende aos interesses de uma minoria privilegiada". Ele também diz que é "grave e preocupante" que o petista tenha "cedido à pressão da bancada ruralista".

Movimentos indígenas argumentam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvo de séculos de violência e destruição, e que as áreas de direito dos povos não devem ser definidas apenas por uma data. Essa foi a posição do Supremo ao derrubar o veto por 9 votos a 2 em setembro.

"O que se estabelece é que as áreas ocupadas pelos indígenas, e que guardam alguma vinculação com a ancestralidade e a tradição dos povos indígenas, ainda que não estejam demarcadas, elas têm a proteção constitucional", disse o ministro Luiz Fux em seu voto.

Por outro lado, ruralistas defendem que tal determinação serve para resolver disputas por terra e dar segurança jurídica e econômica. A posição foi endossada no STF pelos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

"[Sem o marco] Descortina-se a possibilidade de revolvimento de questões potencialmente relacionadas a tempos imemoriáveis", argumentou Mendonça.

O MPF (Ministério Público Federal) divulgou uma nota na quinta-feira (19) para defender que o presidente Lula vetasse integralmente o projeto de lei.

A manifestação é assinada por procuradores da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que trata de assuntos relacionados às populações indígenas e comunidades tradicionais.

No texto, os procuradores dizem que a proposta aprovada pelo Congresso é "inconstitucional e inconvencional" e contraria "garantias constitucionais" e "tratados internacionais" relacionados ao tema.

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