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Debate sobre as Guardas Municipais no Brasil vai além do uso de armas de fogo

Transição para um modelo mais repressivo tem acalorado discussões sobre a natureza civil das Guardas Municipais

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Roberto Uchôa de Oliveira Santos

Pesquisador e doutorando, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

The Conversation

Ao longo das últimas décadas, o papel que as Guardas Municipais exercem no âmbito da segurança pública têm sido alvo de discussões. Inicialmente, ainda nos anos 90, o conceito desse tipo de guarda foi criado por conta da necessidade de se preservar o patrimônio público e histórico de grandes cidades. Com o passar do tempo e do recrudescimento da violência urbana, as Guardas Municipais passaram a ter cada vez mais responsabilidades de apoio na segurança pública, principalmente no patrulhamento preventivo e na preservação da vida das pessoas.

Hoje, em muitas cidades brasileiras as Guardas Municipais já atuam de forma complementar às forças policiais militares, estaduais e federais.

A discussão sobre a legalidade desta função, jamais prevista pela Constituição Federal, já deveria ser, por si só, uma grande polêmica. Mas o debate do momento envolvendo as funções das Guardas Municipais parece já ter atingido um novo e ainda mais perigoso patamar: o uso de armas de fogo.

Guarda Municipal do Rio de Janeiro reprime venda de ambulantes e comerciantes locais durante show - Fernando Maia - 13.set.13/UOL

Nos últimos cinco anos, o crescimento do número de Guardas Municipais pelo país fez com que elas se tornassem estatisticamente relevantes no cenário da segurança pública no Brasil.

Entre os anos de 2019 e 2023, houve um aumento de 23,5% na quantidade de municípios que optaram por estabelecer suas próprias Guardas Municipais. A maioria deles –cerca de 40%– concentraram-se no Rio e em São Paulo. Mas o fenômeno é nacional: hoje, apenas o Acre e o Distrito Federal não possuem nenhuma Guarda Municipal.

A justificativa dos prefeitos em quase todos os lugares é que é necessário investir em segurança local para colaborar com as atividades das polícias estaduais. Mas não há, por parte dos municípios, nenhum controle sobre as operações ou áreas de atuação de suas GMs.

Crescimento ao arrepio da Constituição

Apesar dos altos custos de manutenção destas tropas, os municípios entendem como vantajoso mantê-las. Esse movimento de municipalização da segurança foi em parte impulsionado pelo reconhecimento do governo federal, que passou a considerar as guardas como uma parte integral do sistema de segurança, independentemente do que determina a Constituição no capítulo da segurança pública.

Das funções iniciais de vigiar e proteger o patrimônio público, as guardas tiveram um aumento substancial de seu escopo de atuação com a promulgação de legislações locais. Como o Estatuto das Guardas Municipais e a instituição do Sistema Único de Segurança Pública.

Essas novas leis não apenas ampliaram as competências das Guardas, mas também facilitaram uma colaboração mais estreita com outras instituições de segurança, como as polícias militares, possibilitando uma atuação mais integrada na segurança pública.

A Constituição diz, no seu artigo 144, que a atuação das guardas deveria ter como foco apenas a proteção de bens e serviços públicos municipais. Mas uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de maio de 2023 mudou esse quadro. Na ocasião, o STF estabeleceu que as guardas são oficialmente integrantes do Sistema de Segurança Pública.

Essa determinação representou um marco significativo, não apenas ratificando o papel das Guardas na prevenção e repressão de crimes, mas também garantindo seu respaldo constitucional para agir para além da mera vigilância do patrimônio público. Isso permitiu que elas agora possam prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas e atos infracionais.

Guardas Municipais e armas de fogo

A medida em que as guardas assumiam cada vez mais relevância na segurança pública, o debate que começou a surgir foi sobre o uso de armamento letal por seus integrantes.

Inicialmente, essa possibilidade estava contemplada no Estatuto do Desarmamento, mas estava sujeita a restrições relacionadas ao tamanho das populações das cidades. Antes a lei dizia que apenas municípios com mais de 50 mil habitantes tinham permissão para armar suas Guardas Municipais durante o serviço. No entanto, em 2018, o STF decidiu pela uniformização dessa normativa possibilitando que todas as cidades do Brasil adotassem o uso de armas de fogo por suas Guardas Municipais.

O que se vê é que mesmo antes dessa decisão, o movimento de armar as guardas já acontecia pelo país. Principalmente no estado de São Paulo, onde em 39% dos municípios com GMs os profissionais já estavam autorizados a portarem armas letais em serviço.

De acordo com dados do IBGE, em 2014, 15,6% das Guardas Municipais empregavam armas de fogo, um número que aumentou para 22,4% em 2019.

Ainda não há levantamento recente sobre esse número, mas diante da quantidade de municípios que atualmente discutem o tema, é provável que tenha ocorrido um crescimento ainda maior nos últimos anos, até mesmo em razão da política armamentista do governo Bolsonaro, que incentivou que as Guardas se armassem.

Paralelamente a esse aumento no armamento das instituições, percebe-se que as Guardas se consolidam como polícias, fazendo patrulhamento e repressão pelas cidades.

Isso se reflete na proliferação de estruturas organizacionais qualificadas para lidar com a criminalidade violenta dentro da estrutura municipal. Um exemplo disso são as Romus (Rondas Ostensivas Municipais), compostas por profissionais com treinamento especializado, uniformes e armamento típicos das forças táticas de polícia. Atualmente, há Romus atuando em cidades de praticamente todas as regiões do Brasil.

Distorções conceituais

Essa transição para um modelo mais repressivo tem acalorado os debates sobre a natureza civil das Guardas Municipais. A crescente semelhança entre essas instituições e as polícias militares levanta preocupações quanto à preservação dos princípios de uma polícia comunitária e voltada para o serviço público.

Questões relacionadas aos direitos humanos, ao uso proporcional da força e à responsabilização têm sido levantadas à medida que as Guardas adotam práticas e estratégias mais próximas às das forças policiais tradicionais.

Essas discussões destacam a necessidade de um debate mais amplo e detalhado sobre o papel e a identidade das Guardas Municipais no contexto da segurança pública brasileira.

É evidente que as guardas municipais desempenham um papel importante no panorama da segurança pública do Brasil, atuando em complemento às atividades das forças policiais estaduais e federais. No entanto, o debate sobre o papel dessas instituições vai além da mera discussão sobre o armamento. Existem questões cruciais relacionadas à sua própria existência. Não é o simples porte de uma arma de fogo que vai resolver ou melhorar a segurança pública e sim a forma de atuação da instituição.

É fundamental entender que transformá-las em meras replicações das polícias militares seria um equívoco, uma vez que as Guardas possuem uma identidade e uma missão própria diferente das PMs. A grande questão é estabelecer os limites da atuação da guarda de forma que ela tenha uma abordagem que complemente a segurança pública de forma eficaz, ao mesmo tempo em que respeite os direitos individuais e os princípios democráticos. E é neste contexto que o debate sobre armar ou não a Guarda deve estar inserido.

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