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'Pec das Praias': entenda como outros países legislam sobre privatização de áreas costeiras

Organizações de proteção ambiental e especialistas em ordenamento urbano defendem o estabelecimento de limites às áreas ocupadas

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Lisboa

O debate sobre a concessão de praias e terrenos costeiros à iniciativa privada está em alta em vários pontos do globo, acompanhando o apetite de investidores pela exploração das normalmente valiosas áreas à beira-mar.

Ainda que a maior parte dos países da Europa não venda terrenos em suas praias, diferentes modelos de concessão de exploração são uma realidade no continente.

A imagem mostra cidade litorânea ao amanhecer, com edifícios históricos à beira-mar sob um céu azul profundo. A luzdo sol realça o contorno das montanhas ao fundo, enquanto barcos flutuam nas águas sem ondas
Vista da praia e da igreja Collegiata di Santa Maria Maddalena em Atrani, na costa Amálfi, sudoeste da Itália - Tiziana Fabi - 19.out.22/AFP

Com alguns dos destinos balneares mais badalados do verão europeu, a Itália tem grandes extensões de área concedidas a particulares. Pela lei italiana, os espaços costeiros são públicos, mas autoridades locais podem permitir que empresas e particulares operem serviços diversos, como bares, restaurantes, campings e clubes.

Normalmente, quem explora comercialmente esses locais precisa dar contrapartidas, como o pagamento de uma taxa anual e a instalação de infraestruturas higiênicas e de segurança, além do custeio de serviços de salva-vidas.

Moradores e turistas queixam-se de que, em algumas das principais praias do Mediterrâneo italiano, as faixas de área pública são cada vez mais estreitas.

Um relatório editado pela organização não governamental Legambiente, que compilou registros oficiais e imagens de satélites, estima que mais de 42,8% das áreas costeiras baixas estejam sob concessão no país. Na região de Emilia-Romagna, essa fatia é de quase 70%.

"Há tanto tempo essas concessões são renovadas quase que virou senso comum de que essas praias estavam privatizadas", disse à Folha o responsável pela edição do documento, Gabriele Nanni, gerente de projetos do departamento científico da organização. Ele destaca que muitos dos negócios são comandados há vários anos pelas mesmas famílias.

Uma das principais queixas quanto a esse modelo é a falta de transparência nos processos de concessão. Nos últimos anos, o governo italiano entrou na mira da União Europeia justamente por conta disso: uma possível violação das regras de concorrência sobre a exploração de bens escassos.

"Diferentes governos foram adiando a mudança do sistema, prorrogando as concessões existentes", diz Nanni. Embora o governo de Giorgia Meloni tenha sido favorável às prorrogações, a Justiça italiana decidiu que as concessões expiraram em 31 de dezembro de 2023, devendo, portanto, haver novos processos de seleção.

Apesar disso, a maioria dos concessionários segue operando normalmente. "Como tudo na Itália, há diferenças entre os governos regionais", diz Nanni. Ele cita como bom exemplo a região do Vêneto, que já estaria com projetos em andamento para rever os arranjos em um concurso com transparência. Em outras zonas do país, há autoridades do locais insistindo nas tentativas de prorrogação.

"Essa é uma questão que sempre existiu, mas as pessoas estão mais atentas porque as áreas concedidas aumentaram muito nos últimos anos". Entre 2018 e 2021, dados mais recentes disponíveis, as concessões nas praias italianas cresceram 12,5%.

Organizações de proteção ambiental e muitos especialistas em ordenamento urbano não pedem o fim total do modelo de exploração privada, mas defendem o estabelecimento de limites às áreas ocupadas, maior transparência nos concursos de seleção e exigência de contrapartidas de proteção ecológicas nas áreas costeiras, altamente vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas.

O descontentamento popular, somado ao questionamento jurídico, têm levado a alguns protestos. Às vésperas do início do verão europeu, o grupo Mare Libre (mar livre, em tradução literal), tem realizado uma espécie de "toalhaço" nas praias.

Com o argumento de que as concessões estão expiradas e as praias são portanto públicas, os ativistas entram sem pagar e estendem suas toalhas entre espreguiçadeiras e guardas-sois de áreas concedidas à iniciativa privada, onde passar um dia à beira-mar pode ultrapassar os 100 euros (R$ 576) por pessoa.

Nos Estados Unidos, embora oficialmente todas as áreas costeiras devam ter pelo menos um espaço reservado para o uso público, a situação, como quase tudo no país, varia conforme o estado, com leis que podem ser complexas para a interpretação dos banhistas.

Em Rhode Island, por exemplo, o acesso do público nas areias é liberado até o limite de 3 metros acima da maré alta. As praias, contudo, como era de se esperar, não têm essas áreas demarcadas.

Em entrevista à revista The Atlantic, o professor de direito da Universidade da Carolina do Sul e estudioso das questões de acesso às praias nos EUA, Josh Eagle classificou o sistema americano "meio louco", devido à quantidade e às especificidades das regras locais.

Uma das queixas mais comuns entre os frequentadores americanos são as dificuldades de acesso às áreas públicas. Há ainda o desrespeito pelas já complexas leis sobre o tema. Em pontos valorizados do litoral de Nova York, é comum que proprietários de casas na orla tentem bloquear os acessos para quem vem de fora, eliminando as opções de estacionamento.

Em Nova Jersey, algumas áreas com concessões privadas cobram ingressos apenas para liberarem a passagem dos visitantes pelos pontos de entrada mais cômodos e perto das opções de transporte. Quem não quer gastar precisa dar a volta usar os pontos de acesso mais distantes.

Entre os americanos, porém, há um grande contingente de visitantes que procura áreas de praia congestionadas, sobretudo por conta de comodidades como banheiros, chuveiros e opções de lojas e restaurantes.

No país, também há praias públicas com cobrança de entrada aos visitantes. A prática é justificada como forma de financiamento dos custos elevados de manutenção das estruturas aos banhistas, incluindo limpeza e contratação de salva-vidas.

No Caribe, a privatização de grandes trechos costeiros, incluindo direitos de construção e de aproveitamento turístico das areias, é amplamente difundida. Com a economia local altamente dependente do turismo, muitos governos da região usam essas práticas para atrair investimento estrangeiro, com o objetivo declarado de gerar empregos.

Mesmo quando não há venda ou cessão formal de propriedades, os arranjos normalmente incluem a permissão de longos períodos —que podem ultrapassar 90 anos— de exploração das áreas costeiras.
Nas Bahamas, alterações legislativas de 2018 permitiram arrendamentos de longuíssima duração a investidores privados.

Na Jamaica, apesar de protestos de moradores de que novos empreendimentos hoteleiros estariam restringindo o acesso público ao litoral, o governo tem dado sinal verde a esses investimentos.

Em artigo de opinião no Guardian, o analista de assuntos do Caribe Kenneth Mohammed criticou esse posicionamento. "Imóveis de alto valor, terras protegidas e recursos valiosos estão sendo entregues sem consideração pelas consequências a longo prazo. Isso levanta questões sobre se ainda prevalecem resquícios da mentalidade colonial nas ideologias políticas e na tomada de decisões."

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