Nos EUA e em outros países de língua inglesa, "black money" pode significar dinheiro sujo, com origem na corrupção ou outro crime.
No Brasil, uma startup fundada em 2017 ressignificou a expressão e fez o dinheiro de pessoas negras circular entre empresas e clientes afrodescendentes. Este é o Movimento Black Money (MBM), criado por Marina Silva, 41 --apelidada de Nina ainda na infância-- e Alan Soares, 40.
Quatro anos após sua criação, o MBM possui cartão de crédito, ecommerce e maquininha de cartão. Ganhou evidência na fase mais severa da pandemia com o projeto Impactando Vidas Pretas, ao repassar dinheiro de fundos emergenciais e financiamento coletivo para famílias chefiadas por mulheres negras.
Nina iniciou sua busca de pertencimento na infância no Jardim Catarina, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Desde menina, ela admirava a irmã, seis anos mais velha e a primeira da família a entrar na faculdade.
Após concluir os estudos em colégio particular como bolsista, ela ingressou na Universidade Federal Fluminense, onde cursou administração. No segundo ano, foi convidada a fazer parte da implementação de sistema integrado de gestão empresarial na SAP, empresa alemã de softwares.
"Eu não sabia nada de TI [tecnologia da informação]." Seu namorado à época, que fazia administração de redes, foi quem lhe deu o toque. "Fui porque dava dinheiro", diz Nina.
Autodidata, a empreendedora social usava o tempo livre após o expediente para ler manuais e criar linhas de código. "Só depois de anos na área ganhei os cursos. Cada um custava cinco vezes o meu salário." Nina acumula certificados de cursos em tecnologia e se autodenomina administradora especializada em sistemas e transformação digital.
Mas temas como diversidade, inclusão e antirracismo não eram tão comuns em 2002. "Eu era a cara da diversidade numa época em que 'diversidade' não era tão bem vista. Isso me fez passar por muitos episódios de racismo e misoginia", afirma Nina.
Ser pobre e negra nesse mercado exigia que seu trabalho sempre fosse perfeito, causando ansiedade e estresse. Em 2013, sofreu burnout no auge da carreira e foi morar nos EUA. "Fui para Nova York em busca por pertencimento." De volta ao Brasil, após gastar todo o dinheiro guardado, abriu salão de beleza afro, que faliu em seis meses.
A experiência frustrada a levou a palestras e a pesquisar o universo de pessoas negras que desejavam entrar no mercado de tecnologia. Aí conheceu o futuro sócio, Alan Soares.
"Após um telefonema de horas, decidimos criar o Movimento Black Money. Em poucas semanas já tínhamos site e CNPJ", lembra Nina. Neste ano, a empresária venceu o prêmio Mulher Mais Disruptiva do Mundo no Women in Tech, que reconhece figuras femininas de destaque.
Eu era a cara da diversidade numa época em que 'diversidade' não era tão bem vista. Isso me fez passar por muitos episódios de racismo e misoginia
Menos midiático do que a sócia, Alan Soares chegou ao status de empreendedor social e educador financeiro após ter vivido no Morro dos Urubus, na zona norte do Rio de Janeiro. A melhora financeira veio quando a família se mudou para o Méier, bairro de classe média da região.
Passou no vestibular de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2000. Mas, no oitavo período de curso, mudou de área. Formou-se em comércio exterior na Universidade Estácio de Sá.
Com discursos sobre políticas raciais mais aflorados que Nina, Alan diz que a importância do movimento vai além do empreendedorismo. "O MBM usa o dinheiro como ferramenta para o negro alcançar poder institucional e político."
O MBM usa o dinheiro como ferramenta para o negro alcançar poder institucional e político
Ele rebate críticas quanto à ascensão de pequeno grupo da população negra. "Não acreditamos em 'pretos no topo', essa não é a narrativa do movimento. Acreditamos em um ecossistema de empresas que coabitam entre si, fomentando o mercado entre pessoas negras. Fazendo o dinheiro circular entre todos."
Para Preto Zezé, 45, presidente da Cufa (Central Única das Favelas), negros investindo em negros faz com que a frase "preto e dinheiro não combinam" --verso presente em canções do grupo Racionais MC's-- seja apagada.
"É importante debater economia enquanto se fala de racismo. O preconceito é o principal instrumento da desigualdade entre negros e brancos. Black money não significa pensar no dinheiro pelo dinheiro, é apreciar uma relação de força e de mudança da realidade."
Para Zezé, fazer a renda se espalhar pela população afrodescendente é trabalho lento, por isso a atuação de Nina e Alan é fundamental. "Precisamos ter cada vez mais pretos liderando a agenda econômica."
Negros e pardos são 56% da população brasileira, Mas recebem em média R$ 1.200 a menos do que trabalhadores brancos. E movimentam R$ 1,9 trilhão por ano no país. Na pandemia, esses números começaram a desabar. Foi aí que o MBM abriu outra frente para mitigar os efeitos da crise: o fortalecimento do Mercado Black Money, loja online onde negros podem publicar anúncios de forma gratuita.
Antes do Carnaval de 2019, haviam lançado a D'Black Bank, máquina de cartão anunciada com o slogan "de preto para preto". Com a crise social e econômica na esteira da emergência sanitária, as vendas da maioria dos usuários caíram a quase zero.
Assim, os sócios fizeram uma força-tarefa para colocar o maior número de empresas lideradas por negros na plataforma. No início da pandemia, havia 30 lojas anunciando no Mercado Black Money. Hoje são mais de 2.000.
É o caso de uma educadora que fazia workshops e viu sua renda acabar com a suspensão de viagens nos picos da pandemia. "Após entrar no ambiente digital do MBM, ela vendeu R$ 60 mil em aulas em menos de 12 horas", diz Alan.
Resultados que animam os sócios, cujo objetivo foi criar oportunidades para o povo preto prosperar econômica e intelectualmente. E colocar a comunidade em pé de igualdade social no país, sem que ter que provar o quanto o negro é capaz. E isso, na visão dos idealizadores do MBM, só acontecerá com a união dos negros.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.