Descrição de chapéu Como criar maternidade

Exibir filhos na internet coloca em xeque direitos da criança e expõe seus dados a terceiros

Publicações em redes sociais vêm acompanhadas de questões de segurança e privacidade, alertam especialistas

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São Paulo

Você talvez nunca tenha ouvido falar em "sharenting", mas, se teve filho na última década, as chances de tê-lo praticado são imensas. O neologismo funde duas palavras em inglês —compartilhamento e parentalidade— e se refere ao hábito de registrar os passos das crias nas redes sociais.

Dá para alegar: "Todo mundo faz!". Mas você não é todo mundo, ou não deveria ser. Esse costume tão corriqueiro pode produzir efeitos colaterais nefastos, segundo especialistas. Por mais inofensivo que seja o momento replicado, é preciso ponderar o direito da criança em não ter sua imagem eternizada na internet, e também em como seus dados serão usados por terceiros.

Retrato da da influencer e mãe solo, Aline Barbosa, com os filhos Laura, 14 anos, Vicente, 9,  Joaquim, 7 e Antônia, 4, no apartamento em que moram, no bairro Ruben Berta
A influenciadora Aline Barbosa aprende aos poucos a administrar o que compartilha sobre os filhos nas redes - Carlos Macedo/Folhapress

Em última instância, a rotina escancarada virtualmente pode ser um risco à vida dela. O "sharenting", na definição da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria): "São imagens de crianças com nomes ou dados de identificação colocados muitas vezes sem a intenção de abuso, mas que se tornam elementos distorcidos por predadores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de pedofilia ou pornografia".

E não vale pensar só nos exemplos extremos, como quem de fato vira alvo desses criminosos, ou ainda pais que perderam a guarda dos filhos por mostrá-los em situações flagrantemente vexatórias (uma tiktoker postou seu bebê enrolado em plástico filme, incapaz de mexer braços e pernas, por exemplo).

Tudo entra em xeque: a foto fofa do recém-nascido dormindo, o parabéns na festinha infantil, a criançada tomando banho de piscina. Quem nunca publicou algo assim, afinal?

"Mas você não tem controle sobre o conteúdo do que vai para a internet", diz a psicóloga Maria Beatriz Linhares, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do NCPI (Núcleo Ciência pela Infância). "Existe uma coisa ética sobre não postar crianças [em domínio público], nem fotos inocentes. Temos uma série de maus usos."

Dois exemplos vêm à cabeça da especialista: a notícia de pedófilos usando a inteligência artificial para manipular retratos de menores de idade que os pais publicaram, e o tatuador denunciado por gravar na pele de um cliente a imagem de um menino de quatro anos, pinçada de uma esquina digital sem autorização dos pais.

Tá, mas e aí? Uma outra ala questiona se faz sentido esperar abstinência radical de pais afoitos para exibir seus filhos, em tempos tão desacostumados à privacidade quanto os nossos, em que todo mundo posta tudo o tempo todo. O melhor caminho seria apostar na redução de danos —conscientizar sobre uma exposição menos danosa e para grupos seletos, como perfis fechados para poucos familiares e amigos.

Os dilemas de ostentar crianças nas redes ganha contornos exponenciais para influenciadores como Aline Barbosa, 34. Dona do perfil Mãe Crespa no Instagram, com quatro filhos entre 4 e 13 anos, ela compartilha com 24 mil seguidores instantes como aquele em que a caçula pede um brinquedo e ela responde o clássico materno "na volta a gente compra" –e a menina acredita. Como trilha, um funk de MC Kevin O Chris: "Caiu no meu papinho".

Aline começou a criar conteúdo digital na última gravidez. "Todo o crescimento da Antônia foi relatado nas redes." Já com os mais velhos, menos habituados a isso, ela diz que zela pela negociação. "Às vezes não querem aparecer, e respeito a decisão. A vida é deles."

Hoje sua renda vem "100% do trabalho nas redes" e a permite oferecer uma vida melhor à família, diz. "Quando eu trabalhava como CLT, digamos que uma publicidade [que faça hoje] seriam uns oito meses de trabalho, sabe?" Se o contrato com uma marca envolve o quarteto, "sempre tenho uma conversa com eles antes, não obrigo ninguém a nada", conta.

Aline diz que aprendeu "a dosar muito". Não gosta de mostrar birras. "Só acho que esse momento é tão vulnerável que não é necessário ter essa exposição."

Retrato da da influencer e mãe solo, Aline Barbosa, com os filhos Laura, 14 anos, Vicente, 9, Joaquim, 7 e Antônia, 4, no apartamento em que moram, no bairro Ruben Berta
Aline começou a criar conteúdo digital na última gravidez - Carlos Macedo/Folhapress

Mas já optou em exibir momentos difíceis. Em 2022, o filho insistiu em ir à escola de blusa com manga comprida após ouvir que sua pele, negra, era feia. "No começo me arrependi, achei que estava expondo demais uma dor dele. Mas depois percebi que não, que era necessário falar para que as pessoas tenham consciência de que o racismo existe."

Nossa vivência tão digitalizada é cheia dessas linhas tênues. João Francisco Coelho, advogado do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, lembra que "essas imagens, uma vez compartilhadas, ficam na internet pelo resto da eternidade". Mesmo se você apagar o teor, nada impede que alguém faça um print, por exemplo. Acabamos dividindo situações sem projetar consequências para o futuro.

A causa pode ser nobre, e denunciar o racismo certamente entra nesse pacote. Mas e se, quando adulta, a pessoa não quiser ser associada àquele episódio? Não tem escolha, porque a internet não esquece jamais. O que dizer de pais que publicam fotos do filho em manifestações que lhe parecem justas, como a favor de político "x" ou "y"? Se anos depois o indivíduo repudiar aquela causa, o registro está lá como fonte perpétua de constrangimento.

Até empregadores, auxiliados por ferramentas de tecnologia, podem investigar a fundo a vida do candidato a uma vaga. Caso a mãe tenha desabafado sobre o diagnóstico de transtornos como TDAH do filho, isso pode pesar nessa seleção futura. "Aquilo de alguma maneira pode ser usado contra a criança que sequer teve a possibilidade de dizer se queria ou não que aquela imagem estivesse online", diz Coelho.

Há ainda questões de segurança em jogo, ele aponta. "Se posto meu filho no aniversário dele, estou dizendo para a internet qual a idade dessa criança. Com uniforme escolar, onde meu filho estuda." Prato cheio para criminosos. Fora o tanto de informação à disposição de empresas que monetizam nossos hábitos pessoais, vendendo um catatau de dados para outras corporações.

Se Mark Zuckerberg, criador do Meta, posta retrato dos filhos com seus rostos borrados, algum motivo tem, afirma o advogado.

"Tem que se tomar muito cuidado com o uso que pode ser feito a partir de uma imagem até ingênua", alerta Linhares, do NCPI. A gravação de um bebê comendo banana pode cair no esgoto virtual e alimentar redes pedófilas sem os pais nunca desconfiarem.

São contextos drásticos. Coelho apresenta ainda uma questão de ordem mais filosófica: ao dividir com meio mundo o cotidiano de uma criança sem seu consentimento, "você já desde muito cedo a coloca no mundo a partir de uma lógica em que a imagem dela pode ser compartilhada a qualquer momento sem que ela tenha a menor ingerência sobre isso".

Ele sugere reduzir postagens, apelar ao bom senso para não distribuir momentos potencialmente constrangedores, como sustos e choros, e se o filho for um pouco mais velho, bater um papo. "Pede opinião da criança antes de compartilhar. Não passa por cima, fomenta nela [a noção de] que ela tem direito de imagem e de privacidade."

Essa questão encuca Daniela Arrais antes mesmo de ela ter Martin, 2, com a fisioterapeuta Laura Della Negra. "Há muitos anos, antes de ser mãe, perguntei a uma amiga por que ela não mostrava o rosto da filha nas redes. Lembro até hoje da resposta: ‘A vejo como um ser humano independente, mesmo que ela tenha acabado de nascer. Não sei se vai querer ver sua vida exposta quando tiver idade para entender’."

Sócia de uma plataforma de conteúdo, Arrais fala muito de maternidade no Instagram. O filho, contudo, só aparece de relance. "Mostro ele de costas, os pezinhos, as mãozinhas. Falo de como a existência dele reverbera em mim. Mas escolho não mostrar o rosto. Até porque, quando penso em qualquer número nas redes, tento trazê-los pro mundo físico: eu gostaria de mostrar meu filho pra 500 pessoas de uma vez? Hmmm, acho que não." Ela tem 54,5 mil seguidores por ali.

Daniela diz que pode repensar essa postura mais para frente. "Acho até que, na medida em que ele for crescendo, isso pode virar uma conversa bacana que nos ajude a entender como navegar nesse mundão virtual."

Todo cuidado é pouco. "A gente ainda está numa espécie de jardim da infância do nosso uso de internet, sem pensar tanto nas implicações que podem acontecer". E tudo pode acontecer. "Muitas vezes passa pela minha cabeça que não mostrar o rosto dele pode soar antipático. Mas prefiro lidar com isso do que com um futuro que a gente ainda não sabe como vai ser, ainda mais quando o próprio presente já é muito 'Black Mirror'."

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