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Disputa entre fêmeas e busca por alimento podem ter moldado monogamia em humanos

Primatas ancestrais eram principalmente adeptos da poligamia; hipótese mais aceita hoje aponta a monogamia em humanos como resposta às necessidades biológicas para sobreviver

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São Paulo

Embora seja um sistema de relacionamento hoje questionado por casais que buscam formas mais livres —ou com regras, porém mais libertárias— de se relacionar, a monogamia tem origens bem profundas na história evolutiva dos hominídeos, grupo do qual nós, humanos, fazemos parte.

É difícil saber exatamente quando a monogamia surgiu nos humanos, uma vez que o registro fóssil deixa poucos traços de relações entre casais, dizem especialistas. Mas alguns estudos conseguiram avançar bem em entender por que essa forma de se relacionar surgiu.

Dois macacos apaixonados se abraçando e se beijando
Dois macacos apaixonados se abraçando e se beijando - Ralph Lear/Adobe Stock

Na ciência, monogamia é definida como um tipo de sistema de relacionamento em que são formados pares (chamados pelos pesquisadores de "pair bonds") ao redor dos quais se formam os núcleos familiares. Isso não significa que esses pares sejam vitalícios ou que não possam existir relações extraconjugais. Evolutivamente falando, o sistema monogâmico foi um meio encontrado por diversas espécies de aumentar as chances de sobrevivência e de passar os genes para as gerações futuras.

E, na árvore dos primatas, grupo animal com todos os macacos —incluindo humanos—, a monogamia parece ter surgido pelo menos quatro vezes de maneira independente, até que, em nossa linhagem (gênero Homo), estabeleceu-se como o principal modelo de relacionamento.

"Atualmente, há discussões sobre em que medida os primatas ancestrais eram monogâmicos e se a monogamia também pode evoluir a partir de ancestrais que viviam em grupos. Parte dessa discussão se deve a questões de como a monogamia é definida", diz Dieter Lukas, zoólogo evolutivo e pesquisador da Universidade de Cambridge.

As evidências encontradas até aqui indicam que a monogamia social entre os mamíferos é extremamente rara–algo em torno de 9%, dez vezes inferior ao observado em aves. No caso dos primatas, no entanto, essa proporção sobe para 29%, segundo um estudo com mais de 2.500 espécies de mamíferos de Lukas e seu colega, Tim Clutton-Brock, publicado em 2013 na revista Science.

Algumas das hipóteses levantadas é de que fêmeas vivendo separadas (para evitar disputas) e machos rondadores (isto é, passam de um território a outro) em algum momento formaram pares para acasalar. Ao longo do tempo, aliado à busca por alimentos mais ricos e energéticos, tal comportamento teria impulsionado a monogamia.

"Quando as fêmeas competem por recursos limitados, elas se tornam intolerantes [às demais] e se dispersam mais. Os machos, então, parecem focar em uma única fêmea, garantindo que sejam o pai de seus filhos", explica o zoólogo, destacando que os diferentes tipos de relacionamento encontrados nos primatas de hoje não fornecem evidências suficientes para definir quando a monogamia surgiu nos humanos.

Os bonobos e chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, vivem em grupos de várias fêmeas (bonobos) ou vários machos (chimpanzés), enquanto os gorilas possuem um sistema poligínico, com um macho com várias fêmeas (harém). Já os orangotangos são solitários e tendem a viver sozinhos a maior parte de suas vidas, diz Lukas.

"Isso significa que a monogamia surgiu a partir do momento que nossa linhagem divergiu dos demais primatas, mas não sabemos quando e como."

Em outro estudo publicado no mesmo ano, o antropólogo Christopher "Kit" Opie, da Universidade College de Londres, vê outra hipótese: a monogamia nos grandes primatas surgiu como uma resposta às altas taxas de infanticídio (quando machos matam os filhotes de outras famílias para conseguir acasalar com a fêmea).

Nos demais primatas não humanos, as relações poligâmicas são predominantes, com algumas exceções no grupo dos saguis e micos, os macacos tropicais ou "do Novo Mundo" (América do Sul e Central).

Em nossos genes

Pesquisadores do Laboratório de Evolução Humana e Molecular da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), sob coordenação da professora Maria Cátira Bortolini, se debruçaram sobre genes e variações genéticas associadas à monogamia social em primatas.

Tais alterações são parte do sistema ocitocinérgico, associado à produção da ocitocina, o chamado "hormônio do amor". Esse hormônio tem várias ações nos mamíferos, incluindo contrações uterinas durante o parto, criação de laços afetivos entre a mãe e o filhote na amamentação e escolha do parceiro.

Isso sempre intrigou biólogos porque acreditava-se existir um único tipo de molécula da ocitocina regulando todas as diferentes funções. Mas a equipe de Bortolini mapeou pelo menos quatro tipos da ocitocina em 64 espécies de primatas (com foco nos saguis e micos tropicais). Depois de identificar as moléculas, o grupo usou um algoritmo criado por inteligência artificial para detectar a presença de variantes genéticas da ocitocina e de seu receptor com três tipos de fenótipos associados: monogamia social, cuidado biparental e o nascimento frequente de gêmeos (partos gemelares) nos primatas.

"Mostramos que há um 'combo' evolutivo associado, isto é, quando há a presença desses desfechos com claro caráter adaptativo, também tem variações genéticas associadas", explica.

No caso dos humanos, a variação associada ao receptor da ocitocina é única da nossa linhagem, reforçando a ideia que a base genética da monogamia social pode ter surgido de maneira independente em diferentes linhagens e era possivelmente encontrada nos primatas antes até dos comportamentos associados à monogamia. Isso avança mais um passo na compreensão de que a monogamia é, portanto, uma vantagem evolutiva que surgiu nos primatas.

"Além disso, a única variação genética nos genes candidatos que distingue o Homo sapiens de espécies não monogâmicas de seu clado [outros grandes macacos] é exclusiva da nossa espécie. Esses achados sugerem, dentre outras coisas, que a monogamia social em primatas pode ter surgido a partir de ancestrais não monogâmicos, refletindo um padrão complexo de evolução genética e adaptativa", afirma.

O estudo, ainda não publicado, foi tema da tese de doutorado de Bruna Missaggia, atualmente pós-doutoranda no laboratório, e teve a colaboração de Márcio Dorn, do Instituto de Bioinformática da UFRGS, e de Juliana Bernardes, professora assistente de bioinformática na Universidade de Sorbonne, em Paris.

E a cultura?

Apesar de todos esses achados independentes apontarem para a monogamia como parte da nossa história evolutiva, é indiscutível, no caso dos humanos, uma forte influência de fatores sociais.

"O sistema social humano, onde famílias monogâmicas vivem em grandes grupos, não existe em nenhuma outra espécie de mamífero. Além disso, temos uma forte influência da cultura, inexistente em outros grupos", afirma Lukas.

As mudanças sociais aliadas à espécie humana, embora tenham um forte comportamento cultural, também existem graças a traços genéticos passados por nossos ancestrais, diz a professora da UFRGS.

"Eu costumo dizer que a cultura camufla, mas o arcabouço genético está ali. O amor romântico, a escolha de um parceiro. Tudo isso é explicado pela ocitocina e moléculas associadas, é estar apaixonado, é formar laços afetivos. E isso está nos nossos genes", diz.

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