Descrição de chapéu The New York Times

Chá revelação enfrenta resistência nos EUA com novas discussões sobre gênero

Bolos com recheio azul ou rosa perdem força, mas ainda são parte da indústria que cerca bebês

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Kim Severson
Nova York | The New York Times

​Muita coisa se espera dos bolos, graças a todos os casamentos, aniversários e festas de despedida de colegas de trabalho —e nem sequer estamos falando das pressões mais modernas, como ficar bem na foto nas redes sociais.

Mas há uma revelação que pode trazer boas novas aos bolos: é possível que eles não precisem mais se encarregar de anunciar o sexo de um bebê que está a caminho.

O bolo de revelação do sexo de bebês passou a chamar mais a atenção a partir de 2009, quando astros de reality shows e também casais comuns começaram a abrir bolos decorados em rosa e azul e a divulgar a ocasião em programas de TV matinais ou no YouTube, que na época tinha apenas 4 aninhos de idade.

Rebecca Gruber, vice-presidente de conteúdos de marca da empresa de mídia e tecnologia PopSugar, tomou nota de seu primeiro bolo de revelação em 2010. Na época ela era editora da seção de pais e filhos. Estava pesquisando tendências no setor dos chás de bebê quando topou com uma festa charmosa no YouTube que incluía um bolo azul feito em casa, com cobertura castanha e um cartaz dizendo “o que será que vamos ter?”.

Ela redigiu um post sobre a novidade, mas nem ela nem outras pessoas que acompanham a cultura popular de perto poderiam ter previsto o frenesi que seria deslanchado por aqueles primeiros bolos de revelação.

Nos dez anos passados desde então foram abertas confeitarias dedicadas exclusivamente aos chás revelação. Cupcakes e cake pops (pirulitos de bolo) foram recrutados para reforçar os eventos. Para orientar suas padarias, redes de supermercados traçaram protocolos para a confecção dos bolos de revelação.

O desejo de anunciar o gênero de um bebê que está por vir já ultrapassou as limitações das sobremesas. Hoje em dia o gênero pode ser anunciado com lasanhas feitas com ricota colorida, com “nail art” (maneiras criativas de decorar as unhas) e com a ajuda de jacarés. Um evento de revelação realizado no ano passado e que envolveu um fuzil e um alvo provocou uma explosão e um incêndio que devastou mais de 182 quilômetros quadrados no Arizona.

Enquanto isso, bolos têm sido usados para divulgar notícias de todos os tipos, incluindo coisas como a entrada numa universidade e a realização de uma vasectomia.

“Sinto muito se ajudamos a iniciar essa trajetória”, disse Gruber, falando do uso de bolos em chás revelação.

Como muitos outros estudiosos da cultura pop americana, ela acredita que o fenômeno esteja perdendo força, em parte devido à discussão nacional sobre a identidade de gênero. (Mesmo assim, no mês passado o PopSugar trouxe reportagem sobre um chá revelação com tema “Game of Thrones”, incluindo uma pinhata dourada gigante na forma de ovo de dragão, cheia de confete cor de rosa).

Como foi que chegamos a isso? O bolo de revelação nasceu de uma amálgama de tendências de confeitaria, transformações sociais e tecnologia.

Tanto o Pinterest quanto o Instagram nasceram em 2010, oferecendo plataformas prontas para divulgar a grande revelação e uma subcultura cada vez mais complexa envolvendo decoração de bolos.

O final dos anos 1990 assinalou o início do que poderíamos chamar de a Era Moderna da Cobertura de Fondant, na qual os bolos passaram a ser mais esculturas do que propriamente bolos. O império de mídia de Martha Stewart foi um dos primeiros a aderir à tendência, mas foi preciso o confeiteiro de Baltimore Duff Goldman para levar o movimento às massas, algo que ele fez com seu programa “Ace of Cakes”, que foi ao ar pela Food Network entre 2006 e 2011.

Não é de hoje que bolos exercem um papel simbólico importante, desde os bolos de cevada que os romanos da antiguidade serviam em casamentos até os bolos chineses de pasta de feijão consumidos para festejar o Ano Novo, chegando aos complicados bolos das “quinceañeras”, as festas de 15 anos que assinalam a chegada das meninas latinas à idade adulta.

Hoje, na América do século 21, bolos acabam sendo levados de roldão em conflitos sociais que nada têm a ver com festejos ou gostosuras.

Há o chamado “sheetcaking” (o nome vem de “sheetcake”, qualquer bolo assado em forma retangular ou quadrada) —o ato de devorar o dito bolo para aliviar uma aflição de origem emocional ou política. Tina Fey articulou o conceito em um esquete no “Saturday Night Live” em 2017 em que sugeriu que se devorasse um bolo decorado com uma bandeira americana, em lugar de protestar contra atos públicos de supremacistas brancos.

“O sheetcaking é um movimento de base”, ela declarou, enquanto enchia a boca de bolo. “A maioria das mulheres que conheço o vem praticando uma vez por semana desde a eleição.”

Bolos acabaram sendo envolvidos a contragosto em batalhas nupciais. Em junho passado a Suprema Corte decidiu por margem estreita que um confeiteiro cristão do Colorado não tinha a obrigação de fazer um bolo de casamento para um casal gay. Na semana passada o mesmo dono de confeitaria voltou a ser processado por conta de um bolo —desta vez por uma mulher transgênero que lhe pedira para criar um bolo para festejar uma transição de gênero.

Isso nos conduz a outro fato que enfraquece os bolos de revelação: as atitudes em relação ao próprio gênero vêm mudando.

A jornalista Molly Woodstock, de Portland, lançou em 2018 um podcast chamado Gender Reveal para divulgar notícias sobre pessoas transgênero e não binárias. Woodstock, que é transgênero e usa os pronomes “they” e “them” (que não definem o gênero da pessoa a quem se referem), recebeu mensagens de pessoas transgênero que perguntavam como lidar com convites para festas de revelação de gênero recebidas de colegas ou parentes.

Segundo Woodstock, os bolos de revelação estão perdendo popularidade porque fetichizam a genitália dos bebês e destacam construtos sociais superados relativos aos papéis de gênero. “Não é tanto que se dá muita atenção aos órgãos sexuais do bebê —o problema é a natureza meio agressiva das premissas feitas sobre o que significam esses órgãos genitais”, ela comentou.

Quando pessoas que postam no Instagram seus vídeos e fotos de chás revelação e acidentalmente incluem um tag do podcast Gender Reveal, Woodstock às vezes aproveita a oportunidade de difundir algumas informações. “Digo, por exemplo, ‘este é um momento conveniente para lhe lembrar que a genitália de seu bebê não determina o gênero desse bebê.”

A pessoa que fez o post geralmente remove a tag e bloqueia a conta do podcast.

O sinal mais confiável de que uma tendência está em baixa talvez seja quando ela começa a ser ridicularizada nas redes sociais. Uma das pessoas que curte esse “esporte” é Parker Molloy, editora executiva da Media Matters e mulher transgênero. Ela gosta especialmente de postar no Twitter fotos de bolos kitsch anunciando papéis de gênero exagerados.

“É uma coisa muito americana”, ela comentou. “Você pega uma coisa que é muito simples e então a amplifica e exagera ao máximo.”

Não é difícil encontrar exemplos. Um bolo coberto de verde e rosa coloca uma pergunta: futebol americano ou balé? As variações parecem intermináveis: bigodes ou cílios? Bolas de beisebol ou laços de fita? Revólver ou glitter?

“Daqui a 20 anos talvez a gente olhe para trás e pense ‘ui, que coisa mais sem jeito’”, ela disse.

Para alguns confeiteiros, o preparo de bolos de revelação virou uma tarefa cansativa.

Houve época em que receber uma cartinha selada revelando o sexo do bebê e então criar um bolo para surpreender os pais era até certo ponto emocionante, “mas a coisa acabou crescendo demais e virou cansativa”, comentou Ellen Gray, confeiteira que trabalha na Able Baker, em Maplewood, Nova Jersey.

“A tendência acabou ganhando uma vida própria desvairada”, ela explicou. “A gente recebia resultados de laboratório e praticamente precisaria de um diploma de medicina para entendê-los.”

Ela disse que a confeitaria vai continuar a fazer os bolos enquanto os fregueses continuarem a encomendá-los. “Mas não seria ótimo se este momento todo do bolo de revelação de gênero acabasse de uma vez por todas?”

É possível que isso nunca aconteça. Talvez o bolo de revelação acabe virando uma parte integral do “complexo industrial” que cerca a chegada dos bebês, como as brincadeiras bobinhas nos chás de bebê e os aquecedores de baby wipes.

“Achei que isso aconteceria com os cupcakes, mas não aconteceu”, comentou Julie Richardson, autora de livros de receitas e confeiteira. Com seu marido, Matt Kapler, ela comanda uma padaria e confeitaria em Portland, a Baker & Spice. “Os bolos geralmente fazem parte de comemorações que, como confeiteiros, nos deixam felizes. Mas às vezes acabam incluídos em tendências sociais bizarras.”

Richardson não é fã dos bolos de revelação e tenta dissuadir seus fregueses, explicando que sua confeitaria não trabalha com colorantes alimentares artificiais. Para aqueles que querem um bolo revelação mesmo assim, ela usa creme de framboesa no caso de meninas (ela chama a isso “a revelação vagina”) ou ganache de chocolate para meninos (a “revelação pênis”).

A Publix, uma cadeia de mercearias com 1.218 filiais em sete estados, adotou recentemente um formulário de encomenda online específico para bolos que ocultam em seu interior confeitos rosas ou azuis. Os bolos custam a partir de US$ 27,99 (cerca de R$ 106).

“Acho que isso sempre vai fazer parte da cultura, é apenas uma intensificação do que já víamos antes”, disse Brittany Lavallee, gerente de uma padaria em Tampa, Flórida.

Além disso, é divertido, na opinião do nutricionista David Feder, de Chicago, editor executivo da revista “Prepared Foods”. Ele e sua mulher, a humorista Kat Herskovic, foram a uma loja Whole Foods Market com um envelope selado contendo os resultados do exame e pediram um bolo de revelação. Abriram a caixa e descobriram juntos, sem festa, que teriam um filho.

“Qual é o problema dessas pessoas?” disse Feder, aludindo aos críticos dos bolos, comparando-os ao tipo de pessoas que dão barrinhas de cereais às crianças no Halloween, em lugar de doces. “É apenas uma alegria. Por que alguém não quereria o máximo de alegria?”

Deixaremos a palavra final a cargo de Rose Levy Beranbaum, a exigente autora de “The Cake Bible” e vários outros livros de receitas de bolos e semelhantes. Hoje com 75 anos, ela já fez mais de cem bolos de casamento e não tem medo de combater novidades de pouco valor. Alguém certa vez lhe pediu para fazer um bolo na forma de uma barata que seria pendurado do teto para que os convidados pudessem arrancar mordidas. Ela se recusou.

“Devíamos tratar bolos com algum respeito”, ela comentou.

Mas ela mostra mais tolerância em relação aos bolos revelação, embora nunca tivesse ouvido falar deles até uma repórter lhe perguntar.

“Eu sou alguém que se pauta pelos clássicos”, disse Beranbaum. “Trabalho com coisas duradouras e deliciosas. Então, se houver um jeito de fazer esses bolos para quem sejam bons de se comer, por que não? É mais uma maneira de apresentar um bolo.”

Tradução de Clara Allain 

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