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Marc Lipsitch

Quem é imune ao coronavírus?

Epidemiologista de Harvard apresenta evidências e dúvidas sobre possibilidade de reinfecção por Covid-19 e vacina

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Marc Lipsitch
The New York Times

Uma das muitas incertezas que ainda cercam a Covid-19 é como o sistema imunológico humano responde à infecção e o que isso significa para a propagação da doença. A imunidade após qualquer infecção pode variar de vitalícia e completa a quase inexistente. Até agora, porém, há pouquíssimos dados disponíveis sobre a imunidade ao Sars-CoV-2, o coronavírus que causa a Covid-19.

Diante desta situação, o que podem fazer os cientistas e os tomadores de decisões que dependem da ciência para formular políticas públicas? A melhor abordagem é construir um modelo conceitual —um conjunto de premissas sobre como a imunidade pode funcionar— baseado nos conhecimentos disponíveis hoje sobre o sistema imunológico e informações sobre vírus relacionados; em seguida, identificar como cada aspecto do modelo pode estar errado, como seria possível saber isso e quais seriam as consequências. Depois disso os cientistas devem começar a trabalhar para melhorar essa compreensão, por meio de observação e experimentos.

O cenário ideal —no qual, uma vez infectada, uma pessoa fica imune por toda a vida— se aplica a vários tipos de infecções. O médico dinamarquês Peter Panum descobriu isso em relação ao sarampo quando visitou as Ilhas Faroe (entre a Escócia e a Islândia) durante um surto da doença em 1846 e constatou que os habitantes com mais de 65 anos, que já tinham nascido quando houve um surto anterior da doença, em 1781, estavam protegidos. Essa observação impactante ajudou a lançar os campos da imunologia e da epidemiologia —e desde então, assim como em muitos outros campos, a comunidade científica descobriu que as coisas frequentemente são mais complicadas.

Um exemplo de “mais complicadas” é a imunidade aos coronavírus, um grupo grande de vírus que às vezes passam de hospedeiros animais para humanos. A epidemia de Sars-CoV-2 é a terceira grande epidemia de coronavírus a afetar os humanos nos tempos recentes, após a epidemia de Sars de 2002-2003 e a de Mers, que começou em 2012.

Boa parte do que sabemos sobre a imunidade a coronavírus vem não do Sars ou do Mers, que contagiaram números relativamente baixos de pessoas, mas dos coronavírus que se espalham todos os anos, causando infecções respiratórias que vão desde o resfriado comum até a pneumonia. Em dois estudos separados, pesquisadores infectaram voluntários humanos com um coronavírus sazonal e então, um ano mais tarde, os inocularam com o mesmo vírus ou um semelhante, para observar se eles haviam adquirido imunidade.

No primeiro estudo, pesquisadores selecionaram 18 voluntários que apresentaram resfriado depois de serem inoculados —ou desafiados, como se diz— com uma cepa de coronavírus em 1977 ou 1978. Seis dos participantes do estudo foram desafiados novamente um ano depois com a mesma cepa, e nenhum deles ficou infectado, presume-se que graças à proteção adquirida com sua resposta imunológica à primeira infecção. Os outros 12 voluntários foram expostos a uma cepa um pouco diferente de coronavírus um ano mais tarde, e sua proteção contra ela foi apenas parcial.

Em outro estudo publicado em 1990, 15 voluntários foram inoculados com um coronavírus; dez ficaram infectados. Quatorze retornaram um ano depois para mais uma inoculação com a mesma cepa. Eles apresentaram sintomas mais leves e seu corpo produziu menos vírus que após o desafio inicial, especialmente os voluntários que haviam apresentado uma resposta imunológica forte na primeira vez.

Não foi realizado nenhum experimento desse tipo com humanos para estudar a imunidade ao Sars e ao Mers. Mas medições dos anticorpos no sangue de pessoas que sobreviveram a essas infecções sugerem que essas defesas persistem por algum tempo: dois anos no caso do Sars, segundo um estudo, e quase três anos no caso do Mers, segundo outro. Entretanto, a capacidade neutralizadora desses anticorpos —o grau em que eles inibem a replicação do vírus— já estava declinando durante os períodos cobertos pelo estudo.

Esses estudos formam a base para um palpite razoável sobre o que pode acontecer com pacientes com Covid-19. Depois de infectados com o Sars-CoV-2, a maioria das pessoas terá uma resposta imunológica, que será melhor em algumas pessoas que em outras. Presume-se que essa resposta garantirá à pessoa alguma proteção no médio prazo —pelo menos um ano—, e a partir disso sua eficácia pode diminuir.

Outras evidências indicam que esse modelo pode estar correto. Um estudo recente revisto por pares e dirigido por uma equipe da Universidade Erasmus, na Holanda, publicou dados de 12 pacientes mostrando que eles desenvolveram anticorpos depois de serem infectados com o Sars-CoV-2. Eu e vários de meus colegas e alunos fizemos uma análise estatística de milhares de casos de coronavírus sazonais nos Estados Unidos e utilizamos um modelo matemático para inferir que a imunidade ao longo de um ano, aproximadamente, é provável para os dois coronavírus sazonais mais próximos do Sars-CoV-2 —um possível indício de como pode funcionar a imunidade ao Sars-CoV-2.

Se é fato que a infecção cria imunidade na maioria dos indivíduos ou em todos e que a proteção dura um ano ou mais, então a infecção de números crescentes de pessoas em qualquer população dada vai levar ao aumento da chamada imunidade de rebanho. À medida que mais e mais pessoas ficam imunes ao vírus, um indivíduo infectado tem cada vez menos chances de entrar em contato com uma pessoa suscetível a se contaminar. Com o tempo, a imunidade de rebanho se tornará suficientemente generalizada para que uma pessoa contaminada infecte em média menos de uma outra pessoa. Nesse ponto, o número de casos começará a diminuir. Se a imunidade de rebanho for suficientemente generalizada, mesmo na ausência de medidas destinadas a desacelerar a transmissão o vírus será contido —pelo menos até a imunidade declinar ou até nascer um número suficiente de novas pessoas suscetíveis a ser infectadas.

No momento, os casos de Covid-19 contabilizados estão abaixo do número real, devido aos testes limitados. Em alguns lugares, como na Itália no final do mês passado, é possível que o número real de casos seja dez vezes maior. Se a contagem para baixo for de nível mais ou menos semelhante em outros países também, então a maioria da população em boa parte do mundo, ou no mundo inteiro, ainda é suscetível a ser contaminada, e a imunidade de rebanho é um fenômeno pequeno neste momento. O controle do vírus no longo prazo depende de a maioria das pessoas ser imunizada, ou através da infecção e recuperação ou por meio de vacinação. O tamanho dessa maioria depende de ainda outros parâmetros da infecção que ainda são desconhecidos.

Um fator de preocupação é a possibilidade de reinfecção. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) da Coreia do Sul informou recentemente que 91 pacientes contaminados com o Sars-CoV-2 e que depois tiveram resultados negativos para o vírus, mais tarde ficaram positivos outra vez. Se alguns desses casos de fato se tratam de reinfecções, isso coloca em dúvida a força da imunidade desenvolvida pelos pacientes.

Uma possibilidade alternativa, que muitos cientistas veem como sendo mais provável, é que esses pacientes tenham tido um resultado falso negativo em um teste no meio de uma infecção ainda presente, ou então que a infecção tivesse diminuído temporariamente e então ressurgido. O CDC sul-coreano está trabalhando para avaliar o mérito de todas essas explicações. Como ocorre com outras doenças em que pode ser difícil distinguir uma nova infecção de uma recaída de uma infecção ainda não curada —como a tuberculose—, a questão pode ser resolvida comparando-se a sequência genômica viral do primeiro e segundo períodos de infecção.

Por enquanto, é razoável presumir que apenas uma minoria da população mundial está imune ao Sars-CoV-2, mesmo em áreas fortemente atingidas. Como esse quadro provisório pode evoluir à medida que chegarem dados melhores? Alguns primeiros indícios sugerem que a situação pode mudar em qualquer direção.

É possível que tenham ocorrido muito mais casos de Covid-19 do que os que foram informados, mesmo depois de levar em conta os testes limitados. Um estudo recente (ainda não revisto por pares) sugere que, em vez de dez vezes, digamos, o número de casos detectados, os Estados Unidos podem na realidade ter algo mais perto de cem ou mesmo mil vezes o número oficial. Essa estimativa é uma inferência indireta feita a partir de correlações estatísticas. Em emergências, essas avaliações indiretas podem constituir evidências precoces de uma descoberta importante —ou anormalidades estatísticas. Mas, se esta estiver correta, é possível que a imunidade de rebanho ao Sars-CoV-2 esteja crescendo mais rapidamente do que sugerem as cifras normalmente divulgadas.

Mas outro estudo recente (também este ainda não revisto por pares) sugere que nem todos os casos de infecção podem estar contribuindo para a imunidade de rebanho. Entre 175 pacientes chineses com sintomas leves de Covid-19, 70% desenvolveram respostas imunológicas fortes, mas cerca de 25% desenvolveram uma resposta fraca e por volta de 5% não desenvolveram resposta alguma. Em outras palavras, um caso leve de Covid-19 pode nem sempre levar o paciente a adquirir proteção contra o vírus. Do mesmo modo, será importante estudar as respostas imunológicas de pessoas com casos assintomáticos de infecção pelo Sars-CoV-2 para determinar se os sintomas e sua gravidade indicam se uma pessoa se tornará imune.

O ponto de equilíbrio entre todas essas incertezas ficará mais claro quando mais pesquisas sorológicas, ou exames de sangue para detectar anticorpos, forem conduzidos com grande número de pessoas. Estudos desse tipo estão começando e devem mostrar resultados em breve. É claro que muito dependerá da sensibilidade e especificidade dos diversos testes: quão bem eles conseguem identificar anticorpos ao Sars-CoV-2 quando estão presentes e se conseguem evitar sinais espúrios de anticorpos a vírus aparentados.

Um desafio ainda maior será entender o que uma resposta imunológica significa para o risco de um indivíduo ser reinfectado e o grau em que ele pode contagiar outros. Com base nos experimentos com voluntários envolvendo coronavírus sazonais e nos estudos sobre persistência de anticorpos ao Sars e ao Mers, podemos esperar que uma resposta imunológica forte ao Sars-CoV-2 proteja um indivíduo completamente contra a possibilidade de reinfecção e que uma resposta imunológica mais fraca proteja contra infecção severa, desse modo ainda desacelerando a propagação do vírus.

Mas não é fácil projetar estudos epidemiológicos válidos para procurar respostas a tudo isso. Muitos cientistas estão trabalhando sobre essa questão agora, incluindo várias equipes das quais faço parte. Uma dificuldade é que pessoas previamente infectadas podem diferir de pessoas ainda não infectadas de muitas outras maneiras que talvez modifiquem seu risco de infecção futura. Analisar o papel da exposição prévia a outros fatores de risco é um exemplo do problema clássico que epidemiologistas descrevem como “confuso" —e isso é dificultado tremendamente hoje pelas mudanças aceleradas nas condições da pandemia ainda crescente de Sars-CoV-2.

Mas é extremamente importante entendermos tudo isso muito rapidamente: não apenas para estimar a extensão da imunidade de rebanho, mas também para avaliar se algumas pessoas podem reingressar na sociedade em segurança, sem serem contaminadas outra vez ou servirem de vetores, espalhando o vírus a outras. Um fator central neste esforço será descobrir por quanto tempo dura a imunidade adquirida.

Com o tempo, outros aspectos da imunidade ficarão mais claros também. Evidências experimentais e estatísticas sugerem que a contaminação com um coronavírus pode conferir algum grau de imunidade contra coronavírus distintos, mas relacionados. Ainda não se sabe se algumas pessoas correm risco maior ou menor de infecção com o Sars-CoV-2 por terem um histórico anterior de exposição a coronavírus.

E há a questão do fortalecimento imunológico: através de uma série de mecanismos, a imunidade a um coronavírus pode, em algumas instâncias, exacerbar uma infecção, em vez de prevenir ou mitigá-la. Esse fenômeno problemático é mais conhecido em outro grupo de vírus, os flavivírus, e pode explicar por que tomar uma vacina contra a dengue, uma infecção por flavirírus, pode às vezes agravar a doença.

Esses mecanismos ainda estão sendo estudados com relação aos coronavírus, mas o receio de que eles possam estar em ação é um dos obstáculos que vem atrasando o desenvolvimento de vacinas experimentais contra a Sars e a Mers. Proteger-se contra o fortalecimento imunológico também será um dos maiores desafios que vai confrontar os cientistas que tentam desenvolver vacinas contra a Covid-19.

A boa notícia é que as pesquisas sobre a Sars e a Mers já começaram a lançar luz sobre como funciona o fortalecimento imunológico, sugerindo meios de contornar esse problema, e um conjunto extraordinário de esforços está em curso para encontrar uma vacina contra a Covid-19, usando abordagens múltiplas.

São necessárias mais pesquisas científicas sobre quase todos os aspectos deste novo vírus, mas nesta pandemia, assim como em pandemias anteriores, decisões que terão consequências enormes precisam ser tomadas antes de dispormos de dados definitivos. Em vista dessa urgência, o método científico —formular hipóteses informadas e testá-las com experimentos e epidemiologia cuidadosa— é hiperacelerado.

Diante da atenção pública, esse trabalho está sendo feito sob os olhares gerais, o que não ocorre normalmente. Sob essas circunstâncias difíceis, só posso esperar que este artigo pareça desatualizado em pouquíssimo tempo —que em pouco tempo se descubra muito mais sobre o coronavírus do que é sabido hoje.

Tradução de Clara Allain

Marc Lipsitch é professor do Departamento de Epidemiologia, Imunologia e Doenças Infecciosas da Universidade Harvard 

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