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Coronavírus

Não podemos ficar parados à espera de uma vacina incerta contra a Covid-19

Mudanças de comportamento e medicamentos salvarão vidas e nos deixarão mais preparados para a próxima crise

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Financial Times

Existe uma ideia generalizada de que uma vacina contra a Covid-19 vai vir nos salvar dentro em breve. É improvável que isso ocorra, mas, o que é mais importante, trata-se de uma suposição perigosa a partir da qual planejar a resposta maior à pandemia.

Em 1990 promovi uma conferência em Londres com o título irônico de “Malária: À Espera da Vacina”. A malária vinha se agravando, e muitos pensavam que dependíamos de uma vacina para fazer a maré da doença virar. Anos de pesquisas não tinham resultado em um produto eficaz, mas os vacinólogos eram incorrigivelmente otimistas.

Trinta anos e bilhões de dólares mais tarde, temos uma única vacina de eficácia modesta e que garante proteção por um período curto estreando na África em um programa piloto. Mas não ficamos parados esperando: lançamos um ataque em frentes múltiplas envolvendo novos medicamentos e mosquiteiros tratados com inseticida. Fizemos progresso dramático.

Tivemos avanços semelhantes no combate ao HIV e à Aids. Nos anos 1980 e 1990, não tínhamos armas eficazes, e as esperanças se voltavam para uma vacina que até hoje não existe, a despeito dos grandes investimentos e do trabalho científico criativo empreendido para isso. Em vez disso, temos coquetéis de medicamentos antiretrovirais tremendamente aprimorados que exerceram impacto enorme sobre a mortalidade e a transmissão.

As duas lições a tirar disso são que nossas aspirações de desenvolvimento de vacinas nem sempre se realizam e que, mesmo assim, podemos fazer grandes progressos com novos medicamentos e outras intervenções.

Nossa fé nas vacinas contra a Covid-19 é fomentada em parte pela contranarrativa, que é igualmente verdadeira. A varíola foi erradicada por uma vacina, e as vacinas contra a pólio, o sarampo e outras doenças virais beneficiaram a saúde humana tremendamente. Mesmo assim, as dificuldades de desenvolvimento e aplicação de uma vacina segura e eficaz contra a Covid-19 em 2021 são grandes. Não sabemos se a infecção natural confere imunidade robusta.

Se não for esse o caso, teremos problemas. Embora ainda não seja impossível a ciência passar à frente da mãe natureza, isso não será fácil.

Mais de 140 possíveis vacinas contra a Covid estão sendo estudadas. Seis já se encontram na fase final, os ensaios da fase 3 —um avanço notavelmente rápido. Algumas delas usam tecnologia nova que não é encontrada em nenhuma outra vacina usada hoje. Os grandes investimentos que estão sendo feitos são inteiramente justificados.

Mas não devemos presumir que nossos esforços para desenvolver uma vacina serão bem-sucedidos em pouco tempo, nem sequer que terão êxito. Também é importante ter uma discussão franca sobre que tipo de vacina pode emergir entre os primeiros candidatos. Será algo como a vacina contra a gripe, que confere proteção parcial por um período curto, ou será como a vacina contra o sarampo, que garante proteção elevada e vitalícia?

Existe uma ideia ampla de que uma vacina trará uma “solução” à pandemia e nos resgatará da difícil situação em que estamos. Políticos e desenvolvedores de vacinas têm incentivos para enfatizar essa visão. Mas isso só será verdade se a vacina tiver alto grau de eficácia, garantir proteção prolongada e se o programa de dosagem não for muito oneroso. Também precisa ser possível produzir bilhões de doses e transportar, armazenar e administrá-las em todo o mundo.

É pouco provável que tal produto esteja disponível até o final de 2021. Talvez nunca venha a ser descoberto.

Esse fato deve nos alertar para a necessidade de desenvolvermos uma estratégia coerente para tomar o lugar do lockdown. O lockdown é eficaz para reduzir o número de novos casos diários da doença. Mas é o instrumento de política pública mais grosseiro jamais mobilizado e causa danos colateriais sociais e econômicos enormes. Todos os países precisam de um pacote de medidas, constantemente ajustadas e refinadas, que mantenham o índice de transmissão abaixo de 1, mas permitam a retomada da maior parte da atividade econômica.

Os países da Ásia oriental mostraram como isso pode ser feito: máscaras obrigatórias, distanciamento social pragmático, práticas modificadas no trabalho e na escola e higiene obsessiva, sendo que tudo isso deve ser acompanhado por testes, rastreamento, isolamento e quarentena de doentes, com a ajuda de aplicativos inteligentes e a utilização de dados geoespaciais. Não existe uma solução do tipo “tamanho único”.

Também precisamos de medicamentos eficazes para prevenir a infecção das pessoas dos grupos de alto risco, para tratar casos leves da doença na própria comunidade e possibilitar a sobrevivência dos pacientes gravemente doentes. O desenvolvimento de medicamentos vai avançar mais rápido que o da vacina, e é provável que até meados de 2021 já tenhamos vários medicamentos novos ou que comecem agora a ser usados contra Covid; de fato, já existem dois.

O número de casos e mortes vem crescendo a cada dia nos Estados Unidos devido à abertura parcial da economia sem a adoção de uma estratégia alternativa. O mesmo destino aguarda o Reino Unido e já está sendo testemunhado ao nível subnacional. Isso ocorre em parte porque fomos induzidos a uma tranquilidade infundada por confiarmos que uma vacina vai chegar.

Se a ciência de ponta de fato produzir uma vacina forte no próximo ano ou dois anos, vamos abrir uma champanhe e trabalhar noite e dia para vacinar o maior número possível de pessoas. Enquanto isso, porém, um pacote de intervenções comportamentais e medicamentosas terá salvo muitas vidas e nos deixará mais preparados para a próxima crise, a pandemia X, que sem dúvida vai chegar.

Richard Feachem é diretor do The Global Health Group da Universidade da Califórnia em San Diego.

Tradução de Clara Allain

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