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Coronavírus

Putin deixa o negacionismo e arrisca com seu momento Sputnik

Se funcionar, apesar do atropelo nos testes, vacina russa causará incômodo político no Ocidente

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São Paulo

Desde que a Rússia anunciou, no fim de julho, que iria aprovar uma vacina para a Covid-19 sem completar os passos usuais de segurança, a reação mundial variou de desprezo a mero ceticismo.

Putin fala sobre o coronavírus em reunião com autoridades desde sua residência nos arredores de Moscou
Putin fala sobre o coronavírus em reunião com autoridades desde sua residência nos arredores de Moscou - Aleksei Nikolski/Sputnik/via Reuters

Os motivos para preocupação estão decantados: falta de revisão por pares da metodologia científica que levou à substância e dos testes realizados, e a imunização em massa ao mesmo tempo em que os vitais testes da chamada fase 3 são realizados.

Ainda assim, a pergunta que fica é: e se a vacina russa, anunciada pelo presidente Vladimir Putin nesta terça (11), funcionar? O impacto político disso é tão grande que não faltou ambição na escolha de seu nome fantasia: Sputnik V.

Em 1957, o mundo ainda saía dos escombros da Segunda Guerra Mundial e a União Soviética buscava acompanhar os rivais Estados Unidos em termos tecnológicos. Já havia conseguido explodir sua bomba de hidrogênio e desenvolver mísseis balísticos, mas estava sempre alguns passos atrás.

O componente ideológico do regime comunista emperrava as coisas às vezes, como na promoção pelo ditador Josef Stálin de ideias evolucionistas lamarckistas em pleno século 20, já com as evidências mendelianas sobre hereditariedade estabelecidas, porque se encaixavam melhor com a ideia da construção do Novo Homem soviético.

Assim, foi com espanto que o mundo viu Moscou lançar ao espaço o Sputnik, o primeiro satélite artificial. Naquele momento, contudo, a descrença de que a corrida ao cosmos poderia ter a dianteira assumida pelos menos sofisticados soviéticos era acompanhada por um terror existencial no Ocidente.

Hoje há rivalidade, mas ninguém acha que Putin quer dominar o mundo só porque apressou o lançamento de sua versão 2020 do Sputnik (satélite, em russo).

Mas a disputa política é evidente. O presidente é tratado em boa parte do Ocidente como vilão, o que tornaria uma vitória científica dessa magnitude difícil de engolir em Washington e na maior parte das capitais europeias.

Isso já se via na campanha de fake news, tanto no Brasil quanto nos EUA, sobre as vacinas que estão sendo desenvolvidas pela China contra a doença. Por aqui, a crítica aos chineses virou até política oficial do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), até porque eles são parceiros do governo paulista, de seu rival João Doria (PSDB).

O homem que cunhou o termo "momento Sputnik" para falar da vacina, o presidente do Fundo Soberano da Rússia, Kirill Dmitriev, usou nesta terça outra metáfora da corrida espacial para acenar ao Ocidente: a cooperação com os EUA no voo conjunto Soiuz-Apollo, em 1975.

E lembrou que americanos e soviéticos cooperaram para desenvolver uma vacina contra a poliomielite nos anos 1950, só para o modelo de Moscou ser desacreditado por Washington —e, depois, ser adotado por outros países.

"Essa abordagem politizada da vacina russa pelo ocidente coloca seus cidadãos em perigo", afirmou Dmitriev. Um fator a notar é a parceria já anunciada com os Emirados Árabes Unidos, país com crescentes pretensões científicas que acaba de lançar uma missão para Marte e inaugurar uma usina nuclear.

O ponto de venda dos russos é que a vacina não saiu do nada. Ela usa vetores adenovirais que estavam em estudo no Instituto Gamaleia desde os anos 1980, já empregados em duas vacinas contra o ebola e outra contra a Mers, uma doença semelhante e mais mortífera do que a Covid-19.

Dmitriev afirma que a vacina já foi testada em "milhares de pessoas ao longo de seis anos". Tanto o imunizante em desenvolvimento pela americana Johnson's quanto pela chinesa CanSino usam adenovírus em sua composição.

"Cada uma usa metade de nossa vacina. Mas é o uso dos dois vetores de uma só vez que a faz única, eficiente e duradoura".

Isso, na visão de Moscou, permite pular etapas sobre sua segurança. A Organização Mundial da Saúde e a maioria dos especialistas não concorda com isso, mas um sucesso nessa aposta criaria uma novidade política.

Afinal de contas, Putin é o vilão predileto do Ocidente —embora esteja perdendo rapidamente o posto para o chinês Xi Jinping. Se, depois de anexar a Crimeia em 2014 e anunciar armas nucleares "invencíveis" em 2018, ele conseguir fornecer uma vacina viável ao mundo, um novo Putin poderá surgir.

Não é uma aposta muito diferente daquela de Bolsonaro na eficácia não comprovada da hidroxicloroquina, com a diferença de que há ciência —discutível pelos motivos já citados, claro— por trás dela.

O instituto produtor da Sputnik V, que tira seu nome de Nikolai Gamaleia (1859-1949), o pai da microbiologia e das vacinas russas, tem longa tradição no país.

Já Bolsonaro se inspirou em estudos desacreditados, um a um, e na vontade de seu ídolo Donald Trump de promover o remédio como panaceia de baixo custo. Até o americano, que segue um negacionista na prática, já abandonou a tática.

Como o brasileiro, Putin subestimou os estágios iniciais da pandemia e há diversas críticas sobre a metodologia russa de contagem de mortos, que deixa o país na curiosa situação de ter muitos casos e relativamente poucos óbitos.

Mas, muito mais do que Bolsonaro, o russo assumiu um discurso mais responsável ao longo do tempo. E agora consolida sua conversão e joga tudo no "momento Sputnik", correndo naturalmente o risco de ver o velho Karl Marx acertar uma: "A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa".

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