Descrição de chapéu Coronavírus

Para as vacinas da Covid-19, alguns são ricos demais ou pobres demais

Na África do Sul, a melhor chance de uma pessoa ser vacinada é participar de um teste experimental

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Matt Apuzzo Selam Gebrekidan
Cidade do Cabo | The New York Times

Daqui a alguns meses, uma fábrica na África do Sul deverá começar a produzir diariamente milhões de doses da vacina para Covid-19 no país africano mais atingido pela pandemia.

Mas esses frascos provavelmente serão enviados para um centro de distribuição na Europa e então levados para países ocidentais que encomendaram antecipadamente centenas de milhões de doses.

Nenhuma foi reservada para a África do Sul.

O país que ajudará a fabricar a vacina e cujos cidadãos participaram de testes clínicos só espera ver as primeiras doses em meados do próximo ano. Então, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá já poderão ter imunizado mais de 100 milhões de pessoas.

O primeiro ano da pandemia de Covid-19 revelou que a riqueza de um país não o poupa do vírus. Excesso de confiança, mau planejamento e advertências ignoradas prejudicaram alguns dos países mais ricos do mundo. Mas agora o dinheiro se traduz em vantagens inegáveis.

Nos últimos meses, países ricos como os Estados Unidos e o Reino Unido fecharam acordos com diversos fabricantes de medicamentos e garantiram doses suficientes para imunizar sua população várias vezes. China e Rússia realizaram seus próprios testes e iniciaram programas de vacinação em massa.

Mas países como a África do Sul estão em situação singular, porque não podem esperar por caridade.

Apesar de seu governo estar quase falido e a metade de seus cidadãos viver na pobreza, o país é considerado rico demais para se qualificar para vacinas com preços reduzidos, de organizações de ajuda internacionais. "Quando você não é rico o suficiente, mas não é pobre o suficiente, está atolado", disse Salim Abdool Karim, epidemiologista que dirige o conselho assessor nacional para o coronavírus.

Países pobres e de renda média, geralmente incapazes de competir no mercado aberto, dependem de um esquema complexo de compartilhamento de vacinas chamado Covax. Uma colaboração de organizações de saúde internacionais, o Covax foi criado para evitar as injustiças do livre mercado.

Mas seus acordos incluem condições, e ativistas de saúde estão questionando sua transparência e prestação de contas.

Em meados do próximo ano, as autoridades sul-africanas esperam garantir suas primeiras doses de vacina pelo Covax, enquanto negociam a compra de mais suprimentos de laboratórios farmacêuticos.

Mas em um país onde as propriedades de luxo são separadas por muros de enormes favelas, muitos preveem que as vacinas mais novas serão privilégio de moradores que podem pagar por elas ou possuem seguro-saúde suplementar --programa que beneficia desproporcionalmente a população branca.

"Você poderá entrar na sua farmácia preferida e pagar algumas centenas de rands (cerca de US$ 15) e dizer: 'Me espete'", disse François Venter, pesquisador na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo.

'Talvez tenhamos a vacina em 2025'

A melhor chance que muitos sul-africanos têm de ser vacinados em breve é como voluntários em um teste clínico, experimentando novas vacinas em seus corpos. Mas esse acordo levanta questões éticas.

A primeira é se países como a África do Sul, que está apoiando testes de quatro fabricantes, deve ter doses garantidas caso os testes deem certo. O governo não recebeu essa garantia. E de todo modo tal acerto seria eticamente nebuloso, já que puniria os países que participam de testes sem resultado positivo.

Neste mês, enquanto o Reino Unido se preparava para iniciar sua campanha de vacinação, dezenas de pessoas saíram de seus barracos na comunidade de Masiphumelele, ao sul da Cidade do Cabo, e foram até os portões da Fundação de Saúde Desmond Tutu.

Elas esperaram durante horas, à sombra de uma árvore, pela oportunidade de participar de um teste clínico da vacina da Johnson & Johnson. "As pessoas no topo vão receber a vacina, as pessoas que têm poder", disse Mtshaba Mzwamadoda, 42, que mora em um barraco de metal corrugado de um cômodo com sua mulher e três filhos. "Talvez a gente seja vacinado em 2025."

"Então todos já estaremos mortos", disse Prudence Nonzamedyantyi, 46, dona de casa da mesma comunidade."É por isso que nos inscrevemos", disse Mzwamadoda. "Essa é a única chance que terei."

Katherine Gill, pesquisadora de Aids que chefia o teste, geralmente modera seu entusiasmo por esses ensaios. Mas os primeiros resultados de outros laboratórios foram promissores. "Eu suponho que a menos que você entre em um estudo de vacina não terá acesso a qualquer uma tão cedo", disse a doutora Gill. "Isso obviamente é de partir o coração."

Na década de 1990, quando as drogas antirretrovirais para tratamento do HIV foram desenvolvidas, os sul-africanos se apresentaram para ensaios clínicos sabendo que de outro modo não poderiam pagar pelos medicamentos. "Se você tivesse dinheiro, comprava. Se não, você morria", disse o doutor Venter. "Vai ser a mesma coisa agora."

O Covax foi criado para evitar isso. Ele surgiu com apoio e dinheiro da Organização Mundial de Saúde (OMS), a Coalizão para Preparação e Inovações para Epidemias e Gavi, a Aliança para Vacinas. Mesmo os países que não podem esperar competir no mercado aberto podem entrar no Covax e receber imunizantes. Os países pobres não pagam nada.

Acordos secretos

Assessores médicos sul-africanos dizem que o sistema Covax é vital, mas também profundamente frustrante. Os governos devem pagar adiantado sem saber que vacinas vão receber e sem qualquer garantia de quando as doses chegarão.

O Covax estima o preço por dose, mas oferece pouco recurso se o custo final for muito maior. Os países têm de assumir todo o risco se a vacina falhar ou alguma coisa der errado.

Durante uma ligação recente com repórteres, autoridades do Covax chamaram seu programa de vacina compartilhada de "a única solução global para esta pandemia". "Ainda precisamos de mais doses e, sim, precisamos de mais dinheiro, mas temos um caminho claro para garantir as primeiras 2 bilhões de doses e depois outras mais", disse Seth Berkley, executivo-chefe da Gavi, a Aliança para Vacinas.

Entretanto, Berkley e outras autoridades não quiseram revelar os acordos com as companhias farmacêuticas, dizendo que são segredos empresariais. Eles também não divulgaram os acordos que fecharam com cada país.

"Eles aceitaram comprar algo com dinheiro público, e nós não teremos qualquer influência nos preços", disse a advogada de direitos humanos Fatima Hassan. "O Covax está dizendo que o preço é justo, mas não sabemos. Onde está a transparência?".

Essas compensações podem ser boas para os países que estão recebendo o medicamento quase de graça. Mas a África do Sul está pagando cerca de US$ 140 milhões por suas doses do Covax para vacinar aproximadamente 10% da população, incluindo profissionais de saúde e algumas pessoas de alto risco. O governo espera cobrir os demais 50 milhões de habitantes do país por meio de acordos privados com companhias farmacêuticas.

Globalmente, o processo é sigiloso, e os governos não revelam os preços que estão pagando pelas vacinas. Quando uma ministra belga publicou recentemente a lista de preços para a União Europeia, revelou que eles variam conforme quem está comprando.

Muitos sul-africanos estão profundamente desconfiados das companhias farmacêuticas e da corrupção que permeia o governo. O ministro da Saúde, Zweli Mkhize, disse em uma ligação recente a repórteres que é essencial que os países ricos não acumulem vacinas, mas fora isso o governo pouco disse sobre seus planos.

Indignados, ativistas de saúde ameaçaram processar o governo para que divulgue seus planos. No final, porém, o dinheiro é o grande diferencial. Desde o início, o governo da África do Sul sabia que não poderia encomendar doses antes que fossem testadas e aprovadas, como fizeram os países ricos.

"Enquanto esses países foram às compras, nós nem vimos as vitrines", disse em um webinar recente para médicos Ames Dhai, professor de bioética e membro do painel assessor de vacinação do governo.

Sem garantia

A África do Sul já viu esse esquema antes. Em 2009, quando o mundo temia um surto devastador da gripe H1N1, os países ricos estocaram as primeiras vacinas. O surto foi muito mais fraco do que se esperava, mas revelou as desigualdades que existem quando os países competem por remédios salvadores.

Um exemplo é a vacina contra HPV, que pode prevenir o câncer cervical, mas tem baixo estoque na África do Sul. Os suprimentos estão tão justos que a OMS recomendou que os países ricos parem temporariamente de incluir meninos em suas campanhas de vacinação, para que outros países possam pelo menos imunizar as meninas.

Para a vacina da Covid-19, autoridades e assessores do governo dizem que receberam indagações preliminares da maioria dos laboratórios. Abdool Karim, o chefe do conselho para o coronavírus da África do Sul, disse que é preciso ser judicioso ao escolher uma vacina que se enquadre melhor às necessidades do país.

Correr para comprar o produto da Pfizer, por exemplo, que exige transporte e armazenamento em temperatura ultrabaixa, não faz sentido quando medicamentos mais simples e mais manipuláveis estão no horizonte, disse ele.

Como a África do Sul não encomendou antecipadamente doses de empresas privadas, porém, poderá ver seu fabricante doméstico de medicamentos, a Aspen Pharmacare, produzir vacinas para outros países antes que elas estejam disponíveis internamente.

Sob o contrato com a Johnson & Johnson, a Aspen deverá produzir milhões de doses do imunizante. As autoridades sul-africanas têm grande esperança na vacina, que não exige estocagem a frio e promete funcionar com apenas uma aplicação, e não duas. "Vamos participar de seus testes, vamos fabricar suas vacinas, mas não sabemos se teremos acesso", disse Hassan.

A Johnson & Johnson prometeu vender suas vacinas por preços justos e fornecer 500 milhões de doses ao Covax para ajudar os países pobres. O executivo-chefe da Aspen, Stephen Saad, disse estar orgulhoso desse compromisso. Mas reconheceu que não há garantia para a África do Sul. "É uma decisão da J&J para onde o produto vai", disse ele.

A África do Sul, que já tem mais de 1 milhão de casos de Covid-19, enfrenta sua segunda onda. As autoridades de saúde pública estão especialmente preocupadas com a nova mutação, que, no seu entender, pode ter tornado o vírus mais contagioso.

Em comunidades pobres e da classe trabalhadora, o principal medo é de um novo lockdown. O primeiro lockdown agressivo do governo devastou a economia e confinou muitas pessoas em barracos metálicos construídos quase sem separação, com dezenas de famílias compartilhando uma área comum e muitas mais usando a mesma torneira. "É impossível ter distanciamento social aqui", disse Mzwamadoda, que foi escolhido para o teste da droga.

Ele está contando com a vacina, esperando receber o remédio real e não um placebo. "Quero minha vida de volta", disse. Mzwamadoda acordou se sentindo bem um dia após a injeção. Falou com sua mulher e decidiram que ela deveria ir à clínica da doutora Gill e se inscrever no fim de semana.

Alguns dias depois, porém, a doutora soube que a Johnson & Johnson não precisava mais de voluntários para testar naquele local. Os dados estavam chegando. Um bom resultado, mas quando as pessoas começaram a fazer fila no portão naquela manhã ela teve de recusá-las.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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