Descrição de chapéu Coronavírus

Paciente entra na fila do transplante de fígado por usar drogas do 'tratamento precoce' contra Covid

Angústia para oferecer tratamento pode motivar prescrição de drogas sem eficácia; remédios como azitromicina crescem enquanto cloroquina sai de cena

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São Paulo

Mesmo com evidências científicas de que o chamado “tratamento precoce” (conjunto de remédios como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina) não funciona contra a Covid-19, uma quantidade expressiva de médicos segue prescrevendo os medicamentos a seus pacientes para prevenir ou tratar a doença.

E, com a cloroquina e a hidroxicloroquina como principais símbolos do "kit Covid", citadas diversas vezes pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), as drogas azitromicina e ivermectina parecem estar assumindo um papel de destaque e sendo prescritas e utilizadas mesmo por quem já sabe que o tal "kit Covid" não tem eficácia comprovada.

Médicos relatam que o conjunto de remédios, quando usados em doses inadequadas e contínuas, ou por pessoas com algumas doenças prévias, pode causar efeitos graves como arritmia e hepatite medicamentosa (basicamente, lesões no fígado, órgão que metaboliza drogas).

Segundo um caso documentado pelo Hospital das Clínicas da Unicamp, uma pessoa saudável desenvolveu hepatite medicamentosa após contrair o coronavírus em dezembro e ser medicada com as drogas do “kit Covid”. O paciente entrará para a lista de transplante de fígado, segundo Ilka Boin, professora da Unicamp e diretora da unidade de transplante hepático da universidade.

O presidente Jair Bolsonaro exibe caixa de cloroquina ao anunciar em redes sociais que exame para Covid-19 deu negativo
O presidente Jair Bolsonaro exibe caixa de cloroquina - Reprodução/Jair Messias Bolsonaro no Facebook

Acreditava-se que a hepatite do paciente poderia ser um quadro pós-Covid, considerando que a doença afeta diversos órgãos. Biópsias feitas em janeiro e fevereiro, porém, confirmaram que as lesões estavam associadas a uma hepatite medicamentosa. O histórico clínico da pessoa apontava somente para o uso das drogas do kit, e assim foi feita a associação.

Além da pele e dos olhos amarelados, o paciente apresentou fadiga e coceira. Ele está em casa, com quadro estável, mas ainda sendo observado por especialistas.

A presença do paciente na lista de transplante não significa, necessariamente, que a operação será necessária. A inclusão, porém, facilita o processo em caso de piora do quadro.

Boin afirma que chegou a ver uma prescrição com 16 drogas, quase todas sem eficácia. “Tinha uma dipirona [analgésico e antipirético] pra tomar quatro vezes por dia”, diz, sobre a única medicação no receituário que fazia sentido. Na lista também havia dutasterida, uma droga contra aumento de próstata. Os possíveis efeitos colaterais do medicamento incluem impotência, diminuição da libido e ginecomastia (crescimento de mamas em homens).

Mas, se a cloroquina parece ter saído um pouco de cena (não para Bolsonaro, que insiste em falar da droga), o arsenal ineficaz só cresce, com, por exemplo, vitamina D e zinco.

Segundo Christian Morinaga, gerente-médico do pronto-atendimento do Hospital Sírio-Libanês, os pacientes continuam chegando à instituição em busca de atendimento após reação mais grave ao “kit Covid”.

Morinaga alerta que os pacientes têm tomado doses cavalares de vitamina D, o que pode elevar os níveis de cálcio no sangue e até causar danos renais.

“A suplementação de vitamina D vai ser importante para alguns pacientes, nas doses recomendadas. Muitos acham que quanto mais, melhor, mas não é bem assim”, afirma.

No caso da azitromicina, Morinaga diz que o remédio é indicado para pacientes que tenham alguma infecção bacteriana associada à Covid-19. Em outros casos, o uso é desencorajado, uma vez que antibióticos em excesso podem levar à resistência bacteriana.

A angústia por oferecer algum medicamento aos pacientes que chegam desesperados e a falta de embasamento científico estão entre as principais motivações para que os médicos continuem indicando esses remédios a seus pacientes, segundo especialistas.

Morinaga conta que pacientes que chegam com suspeita de Covid-19 ou com a doença confirmada muitas vezes pedem para receber os remédios do “tratamento precoce” e questionam os profissionais sobre a prescrição que recebem.

“Não é um trabalho fácil tratar a Covid-19. Existe uma grande ansiedade na população, muita falta de informação e notícias falsas. O trabalho de convencimento que o médico tem que fazer é muito difícil”, afirma Morinaga

Para o cardiologista Luís Correia, professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, onde dirige o Centro de Medicina Baseada em Evidência, falta racionalidade científica para os médicos que prescrevem essas drogas apesar de todos os estudos já publicados.

“Naturalmente, muitos médicos tendem a superestimar o que fazem e subestimam o dano que podem causar. Diante da pandemia, tentam ajudar, mas, se a racionalidade científica não está bem construída, acabam abrindo guarda para os vieses. Deixam o viés da crença prevalecer sobre o princípio científico do ceticismo”, afirma Correia.

Na segunda-feira (22), a EMA (agência europeia de medicamentos) publicou um comunicado afirmando que o uso da ivermectina para prevenção ou tratamento da Covid-19 não possui suporte fora de estudos clínicos bem planejados.

Segundo a agência, foram revisados os dados mais recentes de testes feitos com a ivermectina contra o coronavírus. Nenhum pedido para uso do remédio contra a Covid-19 foi feito na União Europeia, de acordo com a EMA.

“Estudos de laboratório mostraram que a ivermectina pode bloquear a replicação do Sars-CoV-2, mas em concentrações do remédio muito mais altas do que as doses atualmente autorizadas [para uso contra alguns tipos de parasitas]”, diz a agência.

A própria desenvolvedora da droga, a farmacêutica Merck (MSD, no Brasil), já afirmou publicamente que os estudos feitos não apontam eficácia da ivermectina contra a Covid.

A Associação Médica Brasileira pediu o banimento do chamado “kit Covid” na terça-feira (23). “Medicações como hidroxicloroquina e cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da Covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas da doença”, afirmou a organização em nota. “A utilização desses fármacos deve ser banida”.

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