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Cresce a prevalência de doenças crônicas: para variar, pobre sofre mais

Se não bastasse ter de passar a conviver com a insegurança alimentar, o pobre também trava luta contra a obesidade e todas as suas mazelas associadas

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Bruno Gualano

É professor da Faculdade de Medicina da USP, especialista em fisiologia do exercício clínico e conduz estudos sobre promoção de estilo de vida saudável para populações clínicas

Se o Ministério da Saúde falha categoricamente em monitorar uma epidemia aguda como a da Covid-19 que nos mata aos montes a olho nu, imagine só, caro leitor, a quantas anda a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis no país.

Como alerta a OMS, essas condições, a despeito de evoluírem insidiosamente, são responsáveis por nada menos do que 71% dos óbitos globais, podendo chegar a 85% nos países não desenvolvidos.

Sem a vigilância adequada das doenças e seus determinantes –o que envolve coleta de dados e análises técnicas sistemáticas– não se podem implementar políticas públicas preventivas baseadas em evidência.

Chama-se Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas) o nosso principal estudo de abrangência nacional que monitora anualmente a prevalência de condições crônicas e seus fatores de risco.

Como a divulgação dos resultados do Vigitel 2020 atrasou (assim como a conclusão da pesquisa de 2021), pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) debruçaram-se sobre os dados disponíveis e publicaram uma breve nota técnica para balizar políticas públicas. Em dezembro de 2021, finalmente o Ministério da Saúde divulgou o relatório completo.

Com base em ambos os documentos, faço um apanhado dos principais resultados, que, adianto, não são nada animadores.

Diabético aplica injeção de insulina em sua casa, antes do jantar, em Maryland, nos Estados Unidos - Hannah Beier - 15.ju.21/Reuters

Em 2020, 16 capitais apresentaram prevalência de obesidade acima de 20%. Há dez anos, nenhuma delas superava a marca.

Manaus, Cuiabá e São Paulo lideram o ranking, com cerca de 25% de obesos. A proporção de pessoas com hipertensão arterial e diabetes do tipo 2 –ambas associadas com o excesso de peso corporal– manteve-se estável na série histórica, com cerca de 25% e 7%, respectivamente.

Em cidades como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, 3 em cada 10 pessoas reportaram ser hipertensos; ao lado de Maceió, a capital fluminense também encabeça o ranking de diabetes, com 11% da população acometida pela doença.

Há um pequeno punhado de fatores de risco que predispõem às doenças crônicas: tabagismo, inatividade física, abuso de álcool e alimentação inadequada. E no quesito hábito de vida, também caminhamos mal.

Na comparação entre 2019 e 2020, portanto dos períodos pré e pós-pandemia, com exceção do tabagismo, praticamente todos os fatores de risco comportamentais se deterioraram, ainda que discretamente.

A inatividade física avançou de 14% para 15% (considerado o critério da OMS de 150 minutos semanais de atividades moderadas a vigorosas, o incremento foi de 45% para 47%). O consumo excessivo de álcool saltou de 19% para 21%. O consumo de ultraprocessados –os alimentos de mentira– também cresceu. Destaque para Porto Alegre, onde cerca de 2 a cada 10 habitantes relataram consumir cinco ou mais grupos desse tipo de alimento diariamente.

Esses dados do Vigitel 2020 reforçam as conclusões de estudos internacionais e nacionais feitos durante a pandemia, como um de nosso grupo da Universidade de São Paulo, que apontara importantes mudanças nos comportamentos alimentares da família brasileira, como o aumento do hábito de "beliscar" alimentos ultraprocessados entre as refeições e a maior demanda por serviços de entrega de fast foods.

A tendência de agravamento da inatividade física identificada pelo inquérito brasileiro também é global, provavelmente como consequência do uso mais frequente de telas para o trabalho, estudo e lazer, bem como das necessárias medidas de restrição de circulação.

O dado mais preocupante do inquérito, como bem destacado pelos pesquisadores do IEPS, refere-se à associação entre determinantes sociais e a prevalência de doenças e fatores de risco. Entre as pessoas menos escolarizadas, as prevalências de hipertensão e diabetes foram mais de duas vezes maiores do que as observadas entre os mais escolarizados. O grupo com menor escolaridade também apresentou piores taxas de obesidade, inatividade física, consumo de frutas e hortaliças e tabagismo.

Como evidenciam os números, a pandemia não tem sido nada fácil, em especial aos não abastados. Se não bastasse ter de passar a conviver com a insegurança alimentar, que atingiu a obscena marca de 55% dos lares brasileiros em 2020, o pobre também trava luta contra a obesidade e todas as suas mazelas associadas.

O cenário que se descortina é característico de uma sindemia –a sobreposição de várias pandemias (Covid-19, obesidade, doenças crônicas, inatividade física etc.) que sobrecarregam sistemas de saúde e golpeiam com mais intensidade pessoas dos andares de baixo.

Enquanto gestores públicos mundo afora se mobilizam para ampliar o guarda-chuva de proteção dos vulneráveis contra a tormenta que se avizinha, por essas bandas, o Congresso Nacional aprovou a proposta de gastos encaminhada pelo Ministério da Saúde mais enxuta em relação ao orçamento total da última década, o que certamente minará a já combalida capacidade de resposta do SUS.

Como se pode antecipar, sofrerá primariamente o pobre, alimentando assim a lista ímpar de iniquidades que somente este país é capaz de produzir.

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