Por que uma pandemia gêmea de coronavírus e gripe talvez nunca aconteça

Teoria sugere que exposição a vírus respiratório ajuda o corpo a se defender de patógenos concorrentes

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The New York Times

Uma teoria intrigante pode ajudar a explicar por que a gripe e a Covid-19 não dominaram os Estados Unidos ao mesmo tempo –a chamada epidemia gêmea que muitos especialistas em saúde pública temiam.

A ideia é que não foram apenas as máscaras, o distanciamento social ou outras restrições da pandemia que fizeram com que a gripe e outros vírus respiratórios desaparecessem enquanto o coronavírus reinava e ressurgissem à medida que ele recuou.

A exposição a um vírus respiratório pode pôr as defesas imunológicas do corpo em alerta máximo, impedindo que outros invasores entrem nas vias aéreas. Esse fenômeno biológico, chamado de interferência viral, pode limitar a quantidade de vírus respiratórios que circulam numa região em determinado momento.

Pessoas usam máscaras enquanto andam pelo metrô de Nova York - Brittainy Newman - 18.fev.2022/The New York Times

"Meu pressentimento, e minha sensação com base em nossa pesquisa recente, é que a interferência viral é real", disse Ellen Foxman, imunologista da Escola de Medicina de Yale. "Não acho que teremos picos de gripe e de coronavírus ao mesmo tempo."

No nível individual, disse ela, algumas pessoas podem acabar infectadas com dois ou até três vírus ao mesmo tempo. Mas em nível populacional, de acordo com essa teoria, um vírus tende a superar os outros.
Ainda assim, ela alertou: "O sistema de saúde pode ficar sobrecarregado bem antes que o limite superior de circulação seja atingido, como mostrou a onda da ômicron".

A interferência viral pode ajudar a explicar os padrões de infecção observados em grandes populações, incluindo aqueles que podem surgir quando o coronavírus se torna endêmico. Mas a pesquisa está no início, e os cientistas ainda têm dificuldade para entender como isso funciona.

Antes que o coronavírus se tornasse uma ameaça global, a gripe estava entre as infecções respiratórias graves mais comuns, todos os anos. Na temporada 2018-2019, por exemplo, ela foi responsável por 13 milhões de consultas médicas, 380 mil internações e 28 mil mortes.

A temporada de gripe 2019-2020 estava terminando antes que o coronavírus começasse a se espalhar pelo mundo, por isso não ficou claro como os dois vírus poderiam influenciar um ao outro. Muitos especialistas temiam que os vírus colidissem no ano seguinte em uma epidemia gêmea, lotando os hospitais.

Essas preocupações não se realizaram. Apesar de um esforço fraco para aumentar a vacinação contra a gripe, os casos permaneceram excepcionalmente baixos durante a temporada de 2020-2021, pois o coronavírus continuou circulando, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC na sigla em inglês).

Apenas 0,2% das amostras deram positivo para gripe de setembro a maio, em comparação com cerca de 30% nas últimas temporadas, e as internações por gripe foram as menores já registradas desde que o CDC começou a coletar esses dados, em 2005.

Muitos especialistas atribuíram a temporada livre de gripe às máscaras, distanciamento social e restrição de movimentos –especialmente de crianças pequenas e adultos mais velhos, ambos com maior risco de contrair gripe grave. Os números da gripe aumentaram um ano depois, no inverno de 2021-2022, quando muitos estados americanos dispensaram as restrições, mas os números ainda eram inferiores à média pré-pandemia.

Até agora neste ano, os EUA registraram cerca de 5 milhões de casos, 2 milhões de consultas médicas, menos de 65 mil hospitalizações e 5.800 mortes relacionadas à gripe.

Em vez disso, o coronavírus continuou dominando os invernos, muito mais comum que os vírus da gripe, o vírus sincicial respiratório, o rinovírus e o vírus do resfriado comum.

O vírus sincicial respiratório, ou VSR, geralmente surge no hemisfério norte em setembro (outono) e atinge o pico no final de dezembro a fevereiro (inverno), mas a pandemia distorceu seu padrão sazonal. Ele permaneceu baixo durante todo o ano de 2020 e atingiu o pico no verão de 2021, quando o coronavírus despencou para seus níveis mais baixos desde o início da pandemia.

A ideia de que existe uma espécie de interação entre os vírus surgiu na década de 1960, quando as vacinas contra a poliomielite, que contêm poliovírus enfraquecidos, reduziram significativamente o número de infecções respiratórias. A ideia ganhou terreno em 2009: a Europa parecia preparada para um aumento dos casos de gripe suína no final daquele verão, mas quando as escolas reabriram os resfriados por rinovírus pareceram de alguma forma interromper a epidemia de gripe.

"Isso levou muitas pessoas na época a especular sobre a ideia da interferência viral", disse Foxman. Mesmo em um ano típico, o pico do rinovírus ocorre em outubro ou novembro e, novamente, em março, em ambas as extremidades da temporada de gripe.

No ano passado, uma equipe de pesquisadores começou a estudar o papel de uma resposta imune existente no combate ao vírus da gripe. Como seria antiético infectar deliberadamente crianças com gripe, eles deram às crianças de Gâmbia (oeste da África) uma vacina com uma cepa enfraquecida do vírus.

A infecção por vírus desencadeia uma complexa cascata de respostas imunes, mas a primeira defesa vem de um conjunto de defensores não específicos chamados interferons. As crianças que já tinham altos níveis de interferon acabaram com muito menos vírus de gripe em seus corpos do que aquelas com níveis mais baixos de interferon, descobriu a equipe. As conclusões sugeriram que infecções virais anteriores prepararam o sistema imunológico das crianças para combater o vírus da gripe.

"A maioria dos vírus que vimos nessas crianças antes de aplicar a vacina eram rinovírus", disse Thushan de Silva, especialista em doenças infecciosas na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, que liderou o estudo.

Essa dinâmica pode explicar em parte por que as crianças, que tendem a ter mais infecções respiratórias que os adultos, parecem menos propensas a se infectar com o coronavírus. A gripe também pode prevenir infecções por coronavírus em adultos, disse Guy Boivin, especialista em vírus e em doenças infecciosas na Universidade Laval, no Canadá.

Estudos recentes mostraram que as coinfecções de gripe e coronavírus são raras, e as pessoas com uma infecção ativa por influenza têm quase 60% menos probabilidade de testar positivo para o coronavírus, observou Boivin.

"Agora vemos um aumento na atividade da gripe na Europa e na América do Norte, e será interessante ver se isso leva a uma diminuição na circulação do Sars-CoV-2 nas próximas semanas", disse ele.

Os avanços tecnológicos na última década tornaram viável mostrar a base biológica dessa interferência. A equipe de Foxman usou um modelo de tecido das vias aéreas humanas para mostrar que a infecção por rinovírus estimula os interferons que conseguem afastar o coronavírus.

"A proteção é por um certo período de tempo, enquanto você tem a resposta do interferon desencadeada pelo rinovírus", disse o doutor Pablo Murcia, especialista em vírus no Centro MRC para Pesquisa de Vírus da Universidade de Glasgow, cuja equipe encontrou resultados semelhantes.

Mas Murcia também descobriu uma distorção na teoria da interferência viral: um ataque pelo coronavírus não parecia impedir a infecção por outros vírus. Isso pode ter algo a ver com a capacidade do coronavírus de escapar das defesas iniciais do sistema imunológico, disse ele.

"Em comparação com a gripe, ele tende a ativar menos esses interferons antivirais", disse Silva sobre o coronavírus. Essa descoberta sugere que, em uma determinada população, pode ser importante qual vírus aparece primeiro.

Silva e seus colegas coletaram dados adicionais de Gâmbia –que não tinha restrições relacionadas à pandemia que pudessem afetar os padrões virais observados– indicando que o rinovírus, a gripe e o coronavírus atingiram o pico em momentos diferentes entre abril de 2020 e junho de 2021.

Esses dados "me deixaram um pouco mais convencido de que a interferência poderia desempenhar um papel", disse ele.

Ainda assim, o comportamento dos vírus pode ser muito influenciado por sua rápida evolução e por restrições sociais e padrões de vacinação. Portanto, é improvável que o impacto potencial da interferência viral se torne aparente até que o coronavírus se estabeleça em um padrão endêmico previsível, disseram especialistas.

VSR, rinovírus e gripe coexistem há anos, observou Nasia Safdar, especialista em infecções associadas a tratamentos de saúde na Universidade de Wisconsin-Madison.

"Com o tempo, é o que acontecerá com este também, ele se tornará um dos muitos que circulam", disse Safdar sobre o coronavírus. Alguns vírus podem atenuar os efeitos de outros, disse ela, mas os padrões podem não ser imediatamente aparentes.

Observando os coronavírus do resfriado comum, alguns pesquisadores previram que o Sars-CoV-2 se tornará uma infecção sazonal de inverno que pode coincidir com a gripe. Mas o coronavírus que causa a Covid-19 já se mostrou diferente de seus primos.

Por exemplo, raramente é visto em coinfecções, enquanto 1 dos 4 coronavírus do resfriado comum é frequentemente visto como uma coinfecção com os outros três.

"Esse é o tipo de exemplo interessante que nos leva a hesitar em fazer generalizações sobre vários vírus", disse Jeffrey Townsend, bioestatístico da Escola de Saúde Pública de Yale que estudou o coronavírus e sua sazonalidade. "Parece ser um pouco específico de cada vírus como essas coisas ocorrem."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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