Descrição de chapéu AIDS

'O HIV tem que ser normalizado, pode afetar qualquer pessoa', diz diretora de programa da ONU

Para Claudia Velasquez, racismo e falta de capacitação fazem com que 27% dos brasileiros com vírus ainda não recebam tratamento

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São Paulo


Mais de um quarto dos brasileiros com diagnóstico de HIV ainda não recebe tratamentos antirretrovirais, e entre as razões para a falta de acesso está o racismo estrutural, afirma Claudia Velasquez, diretora e representante do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) no Brasil.

Para ela, isso, aliado ao estigma e às desigualdades sociais, explica por que na última década o país apresentou queda de 9,8% na proporção de casos de Aids entre as pessoas brancas, enquanto entre os negros houve aumento de 12,9%.

"É o racismo estrutural que existe e afasta as pessoas dos serviços", diz a bióloga de 52 anos, com mestrado em saúde pública internacional.

Claudia Velasquez, diretora executiva do Unaids Brasil - Reprodução/Unaids Brasil

Um estudo do Unaids com 1.784 pessoas com o vírus HIV mostra que 64% já sofreram algum tipo de discriminação: 46% por meios de comentários de familiares, vizinhos e amigos, 25% em assédios verbais e 20% perderam fonte de renda ou foram rejeitados em uma oferta de emprego.

O tema foi tratado em relatório da entidade divulgado nesta terça (29). Velasquez diz que, diante do aumento de casos da infecção entre jovens, o assunto também precisa ser mais discutido na sociedade e estar incluído no currículo escolar.

"O HIV tem que ser normalizado, é uma doença que pode afetar qualquer pessoa, como outras doenças com via de transmissão sexual."

De acordo com a previsão orçamentária de 2023, o programa de HIV/Aids pode perder R$ 407 milhões. Qual o impacto do corte de verbas nessa área? Os investimentos atuais para o enfrentamento do HIV tanto no Brasil quanto em outros países já não são suficientes para acabar com a ameaça que a Aids representa.

O Brasil sempre foi uma referência global contra o HIV, com uma política de estado consolidada ao longo dos anos, por diferentes governos, e foi responsável por salvar a vida de milhares de pessoas. Por ser signatário de importantes compromissos, entre eles a garantia de amplo acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV, o país precisa ter orçamento necessário, e esperamos que isso seja corrigido, e os cortes não ocorram.

Quais estratégias ainda faltam ao Brasil no enfrentamento da epidemia de Aids? Ainda faltam ferramentas para lutar contra as desigualdades que afastam as pessoas dos serviços de saúde e lutar contra estigmas e discriminação.

O Brasil ainda não cumpriu as metas [de que doença deixe de representar uma ameaça de saúde pública até 2030], temos um "gap", 27% das pessoas que foram diagnosticadas com HIV não estão em tratamento.

São pessoas que até podem ter iniciado o tratamento, mas se afastaram dos serviços por diferentes razões, como discriminação e fatores sociais. Essas pessoas ainda não estão com carga viral indetectável e podem transmitir o vírus.

Quais as desigualdades mais marcantes no Brasil que emperram esse enfrentamento? A violência de gênero aumenta o risco de infecção pelo HIV para as mulheres e restringe o acesso aos serviços de saúde daquelas que vivem com o vírus. O racismo também é um entrave. Entre 2010 e 2020 houve queda de 9,8% na proporção de casos de Aids entre as pessoas brancas. Já entre os negros houve um aumento de quase 13%. Por quê? É o racismo estrutural que existe e afasta as pessoas dos serviços.

Se falamos de uma trans negra com HIV em situação de rua, há um acúmulo de desigualdades que praticamente a impossibilita de ter acesso aos serviços e garantir uma vida saudável. As desigualdades trazem muitos desafios para a resposta ao HIV.

E como enfrentar essas desigualdades que vão muito além da área da saúde? É preciso uma resposta firme. As desigualdades matam. Não é só uma questão de ter serviços, porque isso o Brasil já tem, mas derrubar essas barreiras estruturais que, sim, vão além da área da saúde.

Tem que ter uma resposta multissetorial, saúde com assistência social, saúde e educação. Isso deve incluir também a derrubada de leis e políticas punitivas e discriminatórias, substituindo-as por políticas protetoras para garantir a integração dos esforços e dos recursos.

Precisamos também de muita informação para o público, que nos últimos tempos vem recebendo muita fake news sobre o que é o HIV, a Aids. Dentro da violência de gênero, precisamos enfrentar também a masculinidade tóxica que existe na cultura do Brasil, da América Latina e de vários outros países.

Novas infecções pelo HIV têm crescido entre a população jovem. São necessárias estratégias diferentes para esse público? Temos uma decisão recente do Ministério da Saúde de estender a profilaxia pré-exposição, a PrEP, para jovens a partir dos 15 anos de idade. É uma ferramenta forte, mas persiste o desafio representado pelas desigualdades para garantir o acesso. Como fazer para que esse medicamento chegue às comunidades que não procuram os serviços por discriminação, não têm dinheiro para o transporte ou outros fatores?

As comunidades de pessoas que convivem com HIV devem ser integradas ao planejamento [das políticas de saúde] desde o início, tem que ser uma responsabilidade compartilhada, saber quais são as barreiras que elas enfrentam.

Várias organizações apontam retrocessos sobre a discussão do tema HIV nas escolas, por exemplo. É importante retomar essa agenda? Eu sei que pode ter resistência em falar sobre HIV nas escolas, mas podemos começar incluindo o assunto no currículo de saúde escolar. O HIV tem que ser normalizado, é uma doença que pode afetar qualquer pessoa, como outras doenças com via de transmissão sexual.

Ao mesmo tempo, o tema tem que ser trabalhado com os profissionais de saúde que vão atender esses adolescentes, eles não podem ter preconceito. Do contrário, afastam as pessoas jovens dos serviços.

Alguns países discutem criar serviços específicos para jovens, mas isso não é sustentável a longo prazo.

Há uma queixa recorrente preconceito de profissionais de saúde. Ainda falta capacitação? Sim, não somente dos profissionais de saúde como das lideranças também. O Unaids tem um curso virtual voltado aos profissionais de saúde que coloca esse tema do estigma e da discriminação. Mas precisamos ir além dos médicos e enfermeiros, envolver também os guardas, os recepcionistas, desde o início [da jornada do paciente no sistema de saúde].

A atenção primária à saúde não deveria estar mais integrada à assistência das pessoas que vivem com HIV-Aids? Totalmente. Sei que o Ministério da Saúde tem trabalhado nessa integração, ampliando a oferta de serviços para que não fique apenas numa área especializada. Mas isso tem que ser acompanhado de uma capacitação forte de como atender cada uma dessas pessoas, porque as necessidades variam muito.


Raio X

Claudia Velasquez, 52, é diretora e representante do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) no Brasil desde julho de 2020. Natural dos Estados Unidos, é graduada em biologia e possui mestrado em saúde pública internacional, com foco em monitoramento e avaliação e pesquisa operacional, pela Tulane University. Já atuou nos escritórios do Unaids na África do Sul e em Angola.

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