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Governo Lula quer retomar reforma psiquiátrica e fechar 'últimos hospícios'

Comunidades terapêuticas foram distorcidas, diz novo secretário que comandará saúde mental

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Rio de Janeiro

O governo Lula (PT) assume a gestão da saúde mental do país prometendo retomar os princípios da reforma psiquiátrica e fechar os últimos hospitais exclusivos para pacientes com transtornos psíquicos.

A ideia central da nova equipe é expandir e integrar toda a rede de serviços, principalmente as equipes de saúde da família e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), focando as populações mais vulneráveis, como as pessoas em situação de rua.

A visão é essencialmente contrária à dos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), que frearam o financiamento de novas unidades e priorizaram estruturas para casos graves e comunidades terapêuticas para dependentes químicos, em sua maioria religiosas.

Preso com transtorno mental vive em surto na enfermaria do presídio de Macapá (AP) por falta de vagas em centro de custódia - Adriano Vizoni - 13.jul.22/Folhapress

"Voltaremos ao leito do que estava sendo construído antes", defende Helvécio Miranda, médico que assume nesta semana a Secretaria de Atenção Especializada, responsável pelo tema e subordinada à ministra Nísia Trindade. Ele já havia comandado outra secretaria nos anos de Dilma Rousseff (PT).

"Vamos fazer um diagnóstico de onde se aprofundaram os vazios assistenciais, voltar a interlocução com outras pastas, como Educação e Cultura, e continuar o esforço de libertar pacientes crônicos ainda em manicômios, o pior tratamento que pode ser dado além da prisão", diz.

Habilitar centenas de Caps que já existem, mas aguardam na fila por recursos federais, é a "prioridade das prioridades", acrescenta ele. Sanar o enorme déficit de leitos para pacientes em crise em hospitais gerais também está nos planos: "Desde que não seja manicômio, tudo é bem-vindo."

É incerto ainda, porém, o que ocorrerá com comunidades terapêuticas que tiveram a verba dobrada e as vagas sextuplicadas pelo finado Ministério da Cidadania de Osmar Terra (MDB). Miranda diz acreditar que a função delas foi distorcida, porém prega cautela e afirma que ainda é cedo para decidir o que será feito com as mais de 700 unidades já financiadas.

Formalmente, elas são organizações sem fins lucrativos criadas para acolher usuários de álcool e drogas que escolhem estar ali e têm liberdade sobre suas decisões. Na prática, no entanto, parte delas é acusada de maus-tratos e violações aos direitos humanos por diferentes órgãos.

O primeiro entrave aos planos da nova gestão será, como em outras áreas, o orçamento. A saúde mental costuma abocanhar menos de 2% do orçamento do Ministério da Saúde, muito abaixo dos 6% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

O valor é irrisório para tratar de um país que perde mais gente para o suicídio do que para acidentes de motocicleta ou HIV. O total de mortes autoprovocadas dobrou nas últimas duas décadas, escancarando uma multidão de deprimidos e ansiosos impulsionada pela pandemia.

Se quiser alargar a rede, portanto, a gestão petista terá que remanejar as cifras da Saúde, em disputa acirrada desde a elaboração do Orçamento de 2023. Miranda admite que até aqui o dinheiro é insuficiente e diz que destrinchará os números nas próximas semanas.

Pode ajudar o fato de que, pela primeira vez, a saúde mental foi alçada a departamento —antes era uma coordenação dentro de um departamento. Segundo Arthur Chioro, que coordenou a equipe de transição da saúde de Lula, uma pessoa já foi convidada para chefiá-lo, porém ainda não confirmou.

O que foi decidido até aqui é que, abaixo dessa pessoa, haverá dois diretores, que cuidarão da operação e da expansão e avaliação da rede, mas também uma diretoria técnica colegiada de diferentes regiões do país para descentralizar as decisões.

"A guerra do governo com os estados e municípios ficou para trás", afirma o novo secretário, que promete ainda interlocução com os conselhos nacionais de secretários de Saúde dos estados e dos municípios (Conass e Conasems).

Outros compromissos que ele assume são retomar a Conferência Nacional de Saúde Mental e a publicação de relatórios anuais com dados epidemiológicos, de administração e avaliação dos serviços.

A gestão Bolsonaro deixa a saúde mental sob duras críticas de profissionais da área pela falta de participação popular e transparência e pela publicação de portarias que, para eles, desestruturaram a rede de atenção psicossocial (Raps) —o novo ministério diz que criará um grupo de trabalho para analisá-las.

Na visão do psiquiatra Rafael Bernardon, que foi o coordenador nacional da saúde mental até o último dia 31, porém, a avaliação é outra. "Deixamos um arcabouço legislativo para equilibrar a rede, da atenção básica até a hospitalar."

Ele argumenta que paralisou o registro de novos Caps para "induzir o planejamento regional", porque havia muitos pedidos sobrepostos, e diz que sofreu entraves para implantar equipes ambulatoriais e leitos por um "boicote sistemático dos estados" e "amarras ideológicas".

"O entendimento ainda é aquele de que o único caminho possível é o Caps tradicional, não o Caps com estrutura médica maior, por exemplo. Enquanto a amarra ideológica continuar travando o sistema, não teremos no SUS o que o sistema privado oferece", afirma ele, que agora se dedicará ao seu consultório particular.

Brasil no Divã

Série de reportagens da Folha investigou a explosão de problemas de saúde mental no Brasil e como o SUS lida com os casos

  1. A explosão dos transtornos mentais no Brasil

  2. A capacidade do nosso sistema público

  3. O fim dos manicômios

  4. Mitos e preconceitos na saúde mental

  5. Temos cura?

O psiquiatra reconhece que a saúde mental não era tratada como prioridade no antigo governo e que, na disputa por recursos, a área nem sempre levava a melhor. "Houve aumento de serviços na rede, mas deixo alguns na fila porque não teve orçamento para habilitar em 2022."

Até agora não houve uma troca entre a antiga equipe e a nova, e ainda restam muitas dúvidas sobre o futuro da saúde mental no Brasil.

Na próxima terça (10), a equipe de transição de Lula deve divulgar um relatório específico da Saúde com mais detalhes, como fez com o relatório geral em dezembro.

Por enquanto, continua no limbo, por exemplo, um resquício sombrio dos manicômios no país: ainda é incerto o que será feito sobre os presídios e centros de custódia, abarrotados de presos com transtornos mentais sem condições mínimas de tratamento.

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