Descrição de chapéu Projeto Saúde Pública

Ambulatório do SUS de luto infantil ajuda crianças a superar morte de familiares

Demanda por serviço cresceu no pós-pandemia; atendimentos são feitos por psicólogos e psiquiatras voluntários

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São Paulo

Os irmãos José, 9, e Luís, 12, (os nomes são fictícios) perderam o pai por complicações da Covid-19 em fevereiro de 2021. Dois anos depois, no mesmo mês, a mãe deles se suicidou, após um longo período de depressão.

Os meninos moram agora com os avós paternos. José se tornou agressivo e se envolve em constantes brigas na escola. Já Luís se fechou e não obedece ordens em casa ou dos professores.

Todas as terças-feiras, os irmãos e a avó Rozilda Bezerra, 59, saem da região do Grajaú, na zona sul de São Paulo, e seguem para um ambulatório de luto infantojuvenil dentro do Proalu (Programa de Acolhimento ao Luto), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O menino José (o nome é fictício), 9, que perdeu pai por complicações da Covid-19 e mãe por suicídio, é acompanhado no ambulatório de luto infantil da Unifesp, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

"Semana passada, pela primeira vez, o diretor da escola elogiou o comportamento deles. Disse que eles estão melhores, mais calmos. Até chorei de emoção", relata a avó.

No ambulatório que se chama Pequenos Enlutados, um grupo de psicólogos e psiquiatras voluntários lança mão de livros, jogos de emoção, brincadeiras e conversas para ajudar crianças a entender e a acomodar os sentimentos gerados por mortes de pessoas próximas, como pai, mãe, irmãos e avós.

Considerado um processo natural diante do momento de perda, o luto pode representar um problema à saúde quando se torna intenso e prolongado. Desde 2022, a OMS (Organização Mundial da Saúde) passou a definir essas situações como um transtorno mental, já incluído na CID (Classificação Internacional de Doenças).

No dia em que a Folha visitou o ambulatório, o psiquiatra infantil Marcos Ribeiro, que acompanha José, carregava varetas, carretel de linha, cola e papel para construir uma pipa junto com o menino. "Ele ainda não consegue tocar nos sentimentos. Quando a gente tenta acessar emoções como medo, raiva, tristeza, ele foge. A pipa é uma forma de tentar que ele traga algum sentimento."

O Proalu funciona no Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental) da Vila Mariana (zona sul) e nasceu em 2020, durante a pandemia de Covid, para atendimento online de adultos enlutados. Desde então, mais de 3.000 atendimentos foram realizados. Há 40 pessoas na fila de espera.

Segundo a psicóloga Samantha Mucci, coordenadora do Proalu, a demanda de crianças e adolescentes enlutados também cresceu muito e em 2022 foi necessária a criação de um ambulatório presencial para eles. Os profissionais são voluntários.

Luis, 12, irmão de José, brinca com jogo proposto na terapia de luto voltada a crianças e adolescentes em ambulatório da Unifesp, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

São dez sessões focadas em ludoterapia para o luto. De 24 a 36 crianças e adolescentes são atendidos a cada ciclo. Os cuidadores também participam de grupos de acolhimento e recebem orientação de como conversar com eles sobre as perdas. Há uma fila de 83 à espera de atendimento presencial e de 133, virtual .

"Com jogos de construção e reconstrução, por exemplo, a criança entende que quando se destrói um mundo conhecido é possível construir um outro diferente. Ela e a família passam a aprender a viver melhor com a ausência, dão um outro sentido à vida. É mágico", diz Samantha.

Um terço das demandas ainda são decorrentes direta ou indiretamente da pandemia. Além da Covid, há também lutos por mortes por câncer não diagnosticado durante a crise sanitária ou por suicídio causado por depressão. Crianças enlutadas pela morte violenta dos pais também são comuns.

A abordagem vai depender da forma como cada uma enfrenta a perda. "Tivemos um caso em que o pai foi assassinado e atendemos dois irmãos. Um teve dificuldade de socializar, se isolou. Já outro ficou muito agitado, tornou-se agressivo e voltou a fazer xixi na cama", conta a psicóloga Débora Anger.

Os profissionais precisam ser bem criativos na condução de cada caso. Uma menina de cinco anos, por exemplo, parou de comer após a morte do pai, que era o seu principal cuidador. O trabalho tem sido reestabelecer o vínculo da filha com a mãe.

"A gente fez um piquenique com elas. A menina quis fazer um bolo. A gente não tem fogão no ambulatório, mas pegamos o microondas, levamos para o consultório e fizemos. Elas foram se aproximando, criando um vínculo por meio da comida, e a menina voltou a comer", conta Samantha.

Outro menino, de oito anos, foi abandonado pela mãe, dependente de drogas. O pai, que morava no Ceará, estava a caminho de São Paulo para buscar o filho quando sofreu um acidente de carro e morreu.

O garoto foi levado para um abrigo. Lá, tornou-se agressivo e defecava nas calças cada vez que alguém perguntava sobre o pai. No processo terapêutico, ele passou a se expressar por meio das cores. Em desenho do corpo humano, rabiscou de vermelho toda a região gastrointestinal. A cor simboliza a raiva.

"Ele passou a falar como se sentia, a verbalizar sem precisar viver isso no corpo, e foi diminuindo a agressividade", relata a psicóloga Sandra Evangelista. No final do processo, o garoto quis se despedir simbolicamente do pai. Com brinquedos e massinhas, ele e os terapeutas simularam um velório.

Não é incomum que nessas sessões surjam questões que vão precisar de encaminhamento para outros ambulatórios mais especializados. Um menino de oito anos, por exemplo, manifestou em um quadro psicótico durante o tratamento de luto pela morte do pai e foi encaminhado para a psiquiatria.

"Ele retrava a vida antes de perder o pai com desenhos bonitos e coloridos, e, depois da morte, tudo em pedacinhos espalhados. Passou a ouvir vozes de comando, dizendo que ele tinha que morrer para ficar o pai. Com um mês de psicoterapia, ele foi melhorando. Nós o acompanhamos por mais seis meses", conta Samantha.

As histórias mostram que, em se tratando de crianças, nem sempre as metáforas são uma boa escolha para explicar a morte. Por exemplo, um menino passou a não dormir mais depois que a família disse que o pai dele tinha virado estrelinha. "Queria ficar acordado para descobrir qual estrelinha era o pai."

Como há muita demanda também por atendimento online, o programa conseguiu a doação de uma plataforma virtual, especialmente desenvolvida para possibilitar a interação virtual entre a criança e o terapeuta. O projeto também aceita doações para a compra de materiais usados na terapia, como as caixas lúdicas. "Como não recebemos recursos públicos, tudo é feito na raça mesmo", diz Samantha.

Onde procurar ajuda para crianças e adolescentes?

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, a porta de entrada para o atendimento é a UBS (Unidade Básica de Saúde) do bairro. Quando um jovem é atendido numa UBS com ideias suicidas ou após tentativa de suicídio, é feito o encaminhamento para o Núcleo de Prevenção à Violência (NPV), que avalia quais as linhas de prevenção e cuidado necessárias. Em casos de baixo risco, o jovem é acompanhado na própria unidade pela equipe multiprofissional. Casos avaliados como de médio ou alto risco são encaminhados para os Caps Infantojuvenis (Centros de Atenção Psicossocial).

NPV (Núcleo de Prevenção à Violência)
Os NPVs são constituídos por ao menos quatro profissionais dentro das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e de outros equipamentos da rede municipal. Para acolher e resguardar as vítimas, os núcleos atuam em parceria com o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Conselho Tutelar, a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, para avaliar quais ações serão tomadas para proteger cada criança.

Caps Infantojuvenis (Centros de Atenção Psicossocial)
A rede do município conta com 33 Caps Infantojuvenis. Os pais ou responsáveis podem levar o jovem diretamente ao Caps Infantojuvenil, que fará a avaliação e, se o caso for mais simples, reencaminhará o jovem à UBS do bairro.

Mapa da Saúde Mental
O site, do Instituto Vita Alere, mapeia serviços públicos de saúde mental disponíveis em todo território nacional, além de serviços de acolhimento e atendimento gratuitos ou voluntários realizados por ONGs, e instituições filantrópicas, entre outros.

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188, por chat, por email ou diretamente em um posto de atendimento físico.

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