Só mitigar efeitos da pandemia, em vez de frear o vírus, gerou mais mortes, diz epidemiologista

Neil Ferguson, do Imperial College, também afirma que condições do Brasil favorecem surgimento de nova epidemia

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São Paulo

A estratégia de mitigação dos efeitos da Covid-19, em vez da tentativa de frear o Sars-CoV-2, levou ao excesso de mortes pela doença no Brasil, avalia o epidemiologista Neil Ferguson, do Imperial College de Londres.

O país recorreu a uma estratégia de redução das repercussões da pandemia, com abertura de leitos e investimento em terapias para tratar a doença, porém falhou em controlar a disseminação do vírus. Por isso, ocupa o segundo lugar no ranking de mortes acumuladas por Covid, atrás dos Estados Unidos.

Ferguson atuou como principal consultor do governo britânico no início da pandemia, no Imperial College de Londres - Adriano Vizoni - 14.jul.23/Folhapress

O cenário pandêmico foi prejudicado pelas estratégias adotadas por Jair Bolsonaro (PL) e Donald Trump aqui e nos EUA, atacando as medidas protetoras e minimizando os efeitos da Covid.

Além disso, ambos criticaram especialistas que alertavam contra deixar o vírus se propagar livremente para atingir uma imunidade de rebanho, que nunca existiu.

"Uma das estimativas que fizemos era de 1,1 milhão de mortes por Covid nos EUA, e fomos duramente criticados. No início, os países europeus optaram por fazer lockdowns pesados porque suas populações eram mais velhas, mas essa estratégia funciona apenas enquanto essas medidas estão em vigor", afirma o cientista, que é também especialista em modelagem biológica para epidemias.

Durante a pandemia, ele atuou com projeções e estimativas de replicação do vírus e de casos e mortes pela doença em diversos países. Apesar da alta mortalidade, a maioria das mortes por Covid no Brasil aconteceu em 2021, no segundo ano da pandemia, não em 2020, e isso foi efeito da demora em atingir alta cobertura vacinal na população, avalia.

"Acredito que houve esforços de modelagem no Brasil que também foram bem próximos à realidade, mas estes foram prejudicados pelas lacunas de dados históricos sobre transmissão na população e por considerar parâmetros que não eram tão bons para o país."

Ferguson esteve no Brasil no início de julho para um curso de duas semanas promovido pela Escola São Paulo de Ciência Avançada voltado à prevenção de pandemias.

Projeções sobre evolução da Covid
As projeções [do Imperial College] não eram previsões, elas indicavam um escopo potencial tanto de casos quanto de mortes. Houve esforços importantes de modelagem no Brasil, que forneceram projeções bastante realistas do que poderia acontecer. No entanto, foram prejudicados pelas lacunas de dados históricos sobre transmissão na população e por considerar parâmetros que não eram tão bons. Acredito que o Brasil tenha muita experiência em doenças infecciosas e fico bem animado com os esforços aqui, mas fazer modelagens para o país inteiro é desafiador por várias razões.

Parâmetros adequados
São três fatores fundamentais: a taxa de transmissibilidade do vírus, que determina o crescimento da pandemia; a proporção da população em risco de ser infectada; e a gravidade da doença, ou seja, qual a proporção das pessoas infectadas que podem morrer. De janeiro a março de 2020, nós [do Imperial College] produzimos várias estimativas, mas nem sempre eram 100% confiáveis.

Um dos desafios para um país tão grande e diverso como o Brasil é a rapidez com que o vírus se dissemina, já que a sua população é mais jovem comparada à de países europeus. Um outro ponto a considerar é a prevalência de doenças crônicas. Tanto o Brasil quanto o México sofreram com uma mortalidade elevada de Covid porque têm altas taxas de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares em suas populações. A mortalidade no Brasil foi alta, mas não maior do que observamos nos EUA.

Dito isso, fazer a modelagem adequada enquanto a pandemia avança é bem difícil. Sei que houve muita controvérsia, mas uma das estimativas que fizemos era de que 1,1 milhão de pessoas morreriam nos EUA [morreram 1,13 milhão de pessoas], e fomos duramente criticados.

Lição para próximas pandemias
Do ponto de vista da evolução no sentido darwiniano, houve uma pressão evolutiva que favoreceu a evasão de anticorpos. Isso foi calculado para algumas variantes, como a gama [de Manaus], que, embora não totalmente, conseguia evadir parcialmente a imunidade gerada, levando a reinfecções. Isso se tornou um problema maior com a ômicron. Algumas pessoas foram infectadas múltiplas vezes com diversas variantes, e a maioria das pessoas no Reino Unido e Brasil teve Covid mais de uma vez.

Algumas das nossas projeções acabaram sendo afetadas por essa evolução. Em modelagem, buscamos saber quão grave será o pico de uma epidemia, determinado pela rapidez com que os novos casos dobram, mas a entrada de algumas variantes, como a gama, em Manaus, e a delta, na Índia, ocasionaram novas ondas. De certa forma, este sempre foi o nosso receio, por isso optamos por fazer lockdowns, que são uma tentativa de suprimir a disseminação do vírus e evitar a sobrecarga dos hospitais.

‘Achatar a curva’
Existem duas estratégias, a supressão e a mitigação. O Reino Unido adotou uma estratégia de achatamento da curva em detrimento de frear a pandemia em curso. Já a China adotou uma política de Covid zero para suprimir a transmissão de tal forma que não apenas achataram a curva, mas também reduziram os casos a quase zero.

A desvantagem é que essa estratégia funciona apenas enquanto essas medidas, economicamente caras, disruptivas socialmente e insustentáveis a longo prazo, estão em vigor. Assim que você as retira, a dispersão do vírus começa de novo.

O Reino Unido agiu duramente no início, mas a maior parte das mortes aconteceu no segundo ano, quando essas medidas foram retiradas. Felizmente, não tivemos uma taxa de mortes por população maior devido ao sucesso da vacinação.

Risco de o Brasil abrigar a próxima epidemia
É muito difícil prever onde irá ocorrer a próxima epidemia. O que posso dizer é quais são as condições adequadas para uma epidemia e neste caso, sim, o Brasil, assim como países do Sudeste Asiático e da África subsaariana, possuem essas condições.

As pandemias ocorrem, em geral, por vírus animais, então é mais provável em lugares com muitos animais selvagens em contato próximo com grandes populações. A degradação das florestas associada a um enorme número de pessoas oferece um cenário provável para novas epidemias surgirem.

Mudanças climáticas e epidemias futuras
Eu acabei de receber apoio financeiro para investigar as relações das mudanças climáticas com a incidência de arboviroses, como dengue, febre amarela e malária. Não vai ser uma resposta simples, porque em alguns lugares a incidência dessas doenças pode subir, em outros elas podem surgir pela primeira vez porque as condições são mais quentes. Mas é provável também que as condições fiquem insuportáveis até mesmo para a reprodução do mosquito.

Nós conhecemos muito pouco da diversidade dos vírus em animais, apenas 2% a 3%, e não temos como prever quais representam o maior risco. O que podemos fazer é construir melhores sistemas de detecção, vigilância e sequenciamento genômico para mapear essas informações e responder rapidamente.


RAIO-X
Neil Ferguson, 54

Nasceu em Cumbria, na Inglaterra, graduou-se e tem doutorado em física teórica pela Universidade de Oxford. É especialista em modelagem matemática para epidemias, tendo atuado com as pandemias de Sars, gripe aviária, Mers e mais recente com a Covid. Fundou e é diretor do Instituto Jameel e do Centro Global de Análises em Doenças Infecciosas do Imperial College de Londres.

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