Transplante de medula sem 100% de compatibilidade vira opção para tratar doença falciforme

Relatório de entidade mostra que modalidade é maioria em 40 hemocentros do Brasil

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Amanda Panteri
São Paulo

Gabriel Bernardes dos Santos, 22, recebeu indicação para fazer um transplante de medula óssea após desenvolver complicações decorrentes da doença falciforme, mas não tinha um doador. O diagnóstico de Gabriel veio aos três meses de vida. Sua mãe, Katia precisou levar o bebê ao pronto-socorro por causa de uma infecção no ouvido e da cor amarelada de seus olhos.

Seus dois irmãos eram 100% compatíveis entre si, mas ele, não. E procurar alguém que não seja um parente não é uma opção no caso dessa enfermidade. A saída, então, foi receber a medula de sua mãe, Katia, mesmo com 50% de compatibilidade.

Foto do braço da assistente social Sheyla Ventura, que foi diagnosticada com anemia falciforme aos sete anos de idade e perdeu cinco irmãos que também conviviam com a condição (sem saber) por conta de tratamentos inadequados - Lucas Seixas/Folhapress

A enfermidade é hereditária, atinge o sangue e desencadeia diferentes sintomas. Em Gabriel, as consequências foram crises de dor intensas e frequentes, sequestro do baço (com necessidade de cirurgia para retirar o órgão), pneumonias e infecções. É comum também alguns pacientes sofrerem AVC (acidente vascular cerebral).

Sheyla Ventura, 44, assistente social e presidente da Aprofe (Associação Pro Falcemicos), relembra algumas situações pelas quais passou. Diagnosticada aos sete anos, ela perdeu cinco irmãos que também tinham a condição. "Eu precisava usar adesivos de morfina para aliviar as crises. A equipe médica falava que eu era viciada no remédio, porque tomava e continuava gritando de dor", conta.

Gabriel também viveu situações dramáticas. "Em uma das crises, o rim parou. Ele entrou em coma e ficou na UTI por sete dias. Naquele momento, percebi que estava perdendo meu filho e precisava fazer alguma coisa", diz Katia.

Depois de uma conversa entre ela, a equipe médica e Gabriel (já com 18 anos), optaram por usar a medula da mãe.

O chamado transplante do tipo haploidêntico, quando não há 100% de compatibilidade, tem se mostrado uma potencial saída para pessoas com doença falciforme. Ele é feito com células de familiares parcialmente compatíveis, o que expande a possibilidade de se encontrar um doador.

Adriana Seber, hematologista, oncopediatra e vice-presidente da SBTMO (Sociedade Brasileira de Terapia Celular e Transplante de Medula Óssea), conta que a modalidade começou a ser usada no Brasil para tratar doenças como a leucemia.

Atualmente, ele é mais comum. O último relatório da SBTMO analisou dados de 40 hemocentros do Brasil e apontou que, nesse recorte, o procedimento ultrapassou, em quantidade, o transplante de medula 100% compatível desde 2020.

"Para a doença falciforme, foi um caminho mais longo. Isso porque a medula desses pacientes é mais resistente, o que aumenta as chances de rejeição", afirma Seber.

Segundo a médica, no transplante haploidêntico, o sistema imune do paciente demora mais para se recuperar, e o risco de complicações é mais alto.

Hoje, Gabriel está bem e pensa no futuro. "Faz três meses que comecei a trabalhar e voltei a estudar", diz.

No fim de outubro, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou que a enfermidade passará a ser de notificação compulsória. A declaração aconteceu durante a cerimônia de lançamento do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra.

A doença atinge sobretudo a população negra e se manifesta quando a pessoa recebe a mutação dos dois genitores (pai e mãe). Se o filho recebe a mutação de apenas um deles, tem o traço falciforme e não desenvolve sintomas.

O boletim mostra, por exemplo, que houve mais mortes de pessoas pretas (26,75%) e pardas (52,43%) do que de pessoas brancas (16,15%) no Brasil entre 2014 e 2020.

A enfermidade é provocada por uma alteração no gene da hemoglobina, proteína presente nos glóbulos vermelhos. Eles assumem um formato de foice (por isso o nome falciforme) e endurecem, dificultando a circulação de sangue pelo corpo.

O exame que detecta a doença ou o traço está incluso no teste do pezinho desde 2001. De acordo com o Programa Nacional de Triagem Neonatal, em 2022 foram registrados 1.115 novos casos e 62.890 do traço. Não se sabe exatamente o número total de pessoas atingidas —os dados mais recentes falam entre 60 mil e 100 mil.

"Para nós, o passo do Ministério da Saúde é fundamental. Hoje, ainda ocorre muita subnotificação. E se você não tem dados suficientes, não consegue mudar a realidade", afirma Maria Zenó, coordenadora-geral da Fenafal (Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme).

Segundo Zenó, pacientes também enfrentam obstáculos no acesso ao tratamento adequado.

Neste ano, por exemplo, farmácias públicas do Distrito Federal ficaram sem estoque de hidroxiureia durante quatro meses. O remédio age diminuindo a oclusão dos vasos sanguíneos e é essencial no manejo da condição.

Em resposta, a SES-DF (Secretaria de Saúde do Distrito Federal) afirmou que houve "fracassos licitatórios".

A aquisição e a distribuição da hidroxiureia são de responsabilidade dos estados, e o Ministério da Saúde repassa os recursos. "A nossa luta é para que a União assuma a centralização da compra. Isso porque quando os medicamentos faltam, aumenta-se a mortalidade da doença", diz Zenó.

Ainda, a falta de capacitação profissional e os preconceitos pioram a qualidade de vida dos pacientes. "Sabemos que o racismo é um determinante social de saúde. Isso acaba dificultando o acesso a tecnologias e traz invisibilidade à doença."

Esta reportagem foi produzida durante o 8º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que conta com o apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

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