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Desigualdade vacinal ressuscita discussão sobre quebra de patentes

Mais de cem países defendem a ideia, mas especialistas discordam sobre resultado da medida

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Marcelo Lima Loreto Isabela Lobato Natalie Vanz Bettoni
Nova York, Curitiba e Belo Horizonte

Que a vacinação em massa é a forma mais eficiente de controlar a pandemia não há dúvidas, basta ver a queda de internação e mortalidade entre os imunizados. Esse sucesso, porém, ajuda a tornar maior o dilema ético criado pela desigualdade vacinal verificada entre os países.

No ranking de imunização, os 52 países mais pobres, onde moram 20% da população mundial, aplicaram a mesma quantidade de doses que a soma do trio Japão, França e Canadá, responsáveis por 2,9% dos habitantes do planeta. Como conciliar essa diferença com o lema "ninguém está seguro, a menos que todos estejam seguros", adotado pela Organização Mundial de Saúde diante da pandemia?

Funcionárias trabalham na inspeção visual da linha de produção da Coronavac no Instituto Butantan, em São Paulo 
Funcionárias trabalham na inspeção visual da linha de produção da Coronavac no Instituto Butantan, em São Paulo  - Eduardo Anizelli - 14.jan.21/Folhapress

A Covax Facility, iniciativa global capitaneada pela OMS para incentivar a doação de imunizantes a países pobres, não deu certo. Apenas um quarto dos quase 2 bilhões de doses de vacinas prometidas pelo consórcio para 2021 foi doado aos países com baixos índices de vacinação.

Tal descompasso levou mais de cem países a engrossarem uma campanha internacional, liderada por Índia e África do Sul, em defesa da quebra de patentes de imunizantes. O grupo parte da premissa que, liberado o acesso às tecnologias das vacinas, outros países poderiam entrar na produção e impulsionar a vacinação mundial.

A disputa, que acontece no âmbito da Organização Mundial do Comércio, conta com o surpreendente apoio dos EUA e a resistência da União Europeia. O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a ir contra a proposta.

Não há consenso sobre a efetividade da medida, porém. Em geral, produtos complexos como vacinas não estão descritos em uma só patente, porque cada nova descoberta é registrada separadamente e um único produto pode estar abrigado em centenas de patentes associadas.

"É verdade que seria muita burocracia [para quebrar], mas a pandemia não vai acabar rapidamente. O mundo precisa tomar alguma ação para fazer com que as vacinas cheguem rapidamente aonde precisam", argumenta Ehsan Masood, que foi professor de política científica internacional no Imperial College de Londres.

Masood é chefe do departamento editorial da Nature, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo, que em maio deste ano posicionou-se publicamente a favor da quebra de patentes sobre a Covid-19.

Nancy Jecker, professora de bioética na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington, endossa o coro.

"[A quebra de uma única patente] não é uma solução autossuficiente nem milagrosa, mas é o primeiro passo. A pandemia de Covid-19 não será a última que o mundo enfrentará, e nós realmente precisamos compartilhar a capacidade de produção industrial mais amplamente", diz Jecker.

Na posição contrária, o professor de economia Antônio Buainain, da Unicamp, afirma que a quebra de patente é uma medida meramente burocrática, sem reflexos imediatos na produção. "Ela dá o direito de usar aquelas informações para produzir, mas é preciso conhecer os processos, ter capacidade e excelência para isso."

A dificuldade é perfeitamente ilustrada no caso da vacina de RNA mensageiro produzida pela Moderna. Em outubro de 2020 a farmacêutica americana anunciou que, levada pela "obrigação de disponibilizar seus recursos para acabar com a pandemia o mais rápido possível", não restringiria as patentes do imunizante enquanto durar a pandemia.

Isso, no entanto, não significa que a Moderna vá compartilhar por completo a receita para a produção de sua vacina, mas sim que não pretende processar quem construir tecnologias essencialmente idênticas às dela.

Para tentar aproveitar a oportunidade, a OMS concedeu financiamento de US$ 100 milhões para o laboratório Afrigen Biologics, da África do Sul, tentar produzir a vacina da Moderna por engenharia reversa, método em que se busca uma cópia idêntica a partir do estudo de cada parte do modelo.

Há outra barreira no processo de espraiar mundialmente a fabricação, aponta o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão: a complexidade da produção das vacinas de RNA. Sem a expertise das farmacêuticas, "poucos países dominariam essa plataforma tecnológica".

Temporão, que é pesquisador da Fiocruz, defende a figura do licenciamento compulsório, o mesmo mecanismo que o Brasil adotou durante sua gestão no Ministério da Saúde (2007-2011) para produzir um antirretroviral usado no tratamento do HIV/Aids.

Embora no Brasil as expressões sejam usadas de forma intercambiável, licenciar compulsoriamente é diferente de quebrar a propriedade intelectual garantida pela patente.

A quebra (ou suspensão) tem impacto global e libera a patente para todas as empresas com capacidade de produção. Já o licenciamento compulsório acontece em âmbito de uma nação ou de um grupo de nações e exige um processo bem mais lento.

Apesar de considerar vitoriosa a experiência brasileira, o ex-ministro lembra que a complexidade das vacinas exige maior capacidade industrial e tecnológica do que a fabricação de medicamentos tradicionais. O país ou laboratório eventualmente autorizado precisaria ter equipe que domine a técnica, além de dinheiro para bancar novamente os dispendiosos testes clínicos de fase 3.

Para Temporão, essas dificuldades poderiam ser superadas com o projeto do senador Paulo Paim (PT-RS), aprovado em abril deste ano, que permite ao Brasil licenciar compulsoriamente vacinas e outras tecnologias de saúde em situação de calamidade (como uma pandemia).

Pelo projeto aprovado, a empresa proprietária da patente era obrigada a transferir know-how e fornecer os insumos usados nos produtos licenciados.

Ao sancionar a lei, o presidente Bolsonaro vetou o trecho e anunciou que o licenciamento compulsório só será usado caso alguma empresa detentora da patente se recuse ou não consiga atender à necessidade do país. Temporão diz que o presidente "relativizou um projeto que poderia ser vitorioso".

Do outro lado do balcão, a presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Elizabeth de Carvalhaes, analisa que os vetos do presidente foram muito lúcidos e demandaram "muito trabalho de todos nós".

Segundo Carvalhaes, a Interfarma acredita que o licenciamento compulsório seria uma medida inócua e não traria solução a curto prazo, pois o processo de transferência de tecnologia é extremamente complexo e lento, e os insumos para produzir são muitas vezes escassos e estão espalhados em distintas regiões do mundo.

Esta reportagem foi produzida no Programa de Treinamento em Ciência e Saúde da Folha, que tem o  apoio da Roche e do Instituto Serrapilheira

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto dizia que Ehsan Masood, editor-chefe de Opinião da revista Nature, é professor de política científica internacional no Imperial College de Londres. Ele deixou o cargo em 2017.

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