Fato e ficção se confundem na história da Copa do Mundo feminina

Fifa reconhece jogo em 1971 como 1ª partida internacional, mas houve outras antes

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Jeré Longman
Hazebrouck | The New York Times

Não há uma placa comemorativa no pequeno estádio da cidade francesa de Hazebrouck. Nada que celebre aquele jogo histórico. Algumas das jogadoras dizem que não faziam ideia da importância imediata da ocasião, antes do apito final. Uma das melhores jogadoras da era não pôde participar porque não conseguiu dispensa no emprego.

Foi só décadas mais tarde que os dirigentes do futebol, que ignoraram o futebol feminino por muito tempo e permitiram que sua prática fosse proibida na Inglaterra, França e Alemanha, decidiram atribuir um significado maior, em larga medida forjado, ao jogo. Como se fosse possível insuflar importância histórica a uma prótese de quadril.

Em 17 de abril de 1971, uma noite fria de sábado, a França derrotou a Holanda por 4 a 0 no Stade Auguste Damette. Cerca de mil espectadores acompanharam a façanha da meio-campista francesa Jocelyne Ratignier, que marcou três gols.

Depois, algumas das jogadoras francesas disseram que haviam sido informadas de que a partida era parte das eliminatórias para uma Copa do Mundo feminina extra-oficial que seria jogada em agosto daquele ano no México. Algumas delas recordam um brinde com champanhe.

Na virada do século 21, a Fifa, organização que comanda o futebol mundial, decidiu reconhecer a partida entre França e Holanda como primeiro jogo oficial de futebol feminino entre seleções. Isso não é verdade. As seleções femininas da Inglaterra e Escócia já tinham jogado no final do século 19.

Em 1920, uma seleção francesa enfrentou uma seleção inglesa. Antes do jogo, as capitãs trocaram um beijo no rosto para demonstrar espírito esportivo e desejar boa sorte à adversária —o que gerou talvez o primeiro momento internacional de mídia para o futebol feminino.

À esq. Ghislaine "Gigi" Royer-Souef, Marie-Claire Caron e Michèle Monier, em uma reunião em Nice, France, em junho de 2019. Elas representaram a França, em 1971, em um torneiro precursor da Copa do Mundo
Presentes na partida de 1971, Ghislaine "Gigi" Royer-Souef, Marie-Claire Caron e Michèle Monier, em uma reunião em Nice, France, em junho de 2019 - Pete Kiehart/The New York Times

Uma foto mostrando o beijo foi publicada em jornais de todo o mundo, da Austrália à América do Sul e Ásia, de acordo com Jean Williams, historiadora de esporte britânica.

"Foi um beijo que deu a volta ao mundo", ela disse.

Mas, ainda assim, a partida de 1971 serve como história de origem reveladora para a atual Copa do Mundo feminina, e como ilustração útil de como o esporte evoluiu, na França e em outros países. As jogadoras da seleção francesa que disputou aquela partida assistiram a jogos da seleção francesa na atual Copa do Mundo como convidadas de honra.

A equipe era estritamente amadora. Muitas das jogadoras eram estudantes, algumas delas de segundo grau. Eram tratadas com descaso, e aconselhadas a voltar para casa, cozinhar e cerzir meias. Hoje, a seleção francesa consiste de profissionais que desenvolvem seus talentos em uma liga nacional de futebol feminino que prospera cada vez mais.

A partida de 1971 também serve como admissão tácita pela Fifa de que deixou o futebol feminino na mão por décadas. A Copa do Mundo feminina oficial surgiu apenas em 1991. E mesmo então, a designação foi atribuída ao torneio apenas em retrospecto, porque a Fifa hesitava em atribuir sua marca mais valiosa a um torneio feminino disputado por 12 seleções, em partidas de 80 minutos.

Colette Guyard, 57, que era meio-campista da França no jogo não oficial, em 1971
Colette Guyard, 57, que era meio-campista da França no jogo extra-oficial, em 1971 - Pete Kiehart/The New York Times

"É espantoso o quanto a mentalidade mudou", disse Collette Guyard, 67, meio-campista na seleção francesa de 1971, por meio de um intérprete. "As mulheres já não se limitam a lavar meias".

Partidas organizadas entre times femininos surgiram na França em 1917, na verdade, e a primeira liga de futebol feminino do país foi organizada em 1919, de acordo com a historiadora Lindsay Sarah Krasnoff, autora de uma história do esporte francês chamada "The Making of Les Bleus".

Mas em 1941, um ano depois da derrota da França pelos nazistas, o governo colaboracionista de Vichy proibiu o futebol feminino, sob o pretexto de que havia "risco grande demais" de que o esporte "masculinizasse" as mulheres, de acordo com um estudo de uma organização de pesquisa francesa chamada Iris.

Esse estereótipo persistiu na França até 1965, de acordo com um artigo postado no site da Fifa em 2011, que citava uma reportagem da revista France Football segundo a qual "em nossa opinião, o futebol é só para homens".

Mas as atitudes quanto a mulheres e esportes começaram a mudar no final da década de 1960, um período de desordenamento social e de avanço para a segunda onda do feminismo. Em 1970, a federação francesa de futebol reconheceu oficialmente o futebol feminino. No mesmo ano, disse Ghislaine Royer-Souef, que jogou como goleira e zagueira central, seu clube, de Reims, fez uma excursão a diversas cidades dos Estados Unidos, disputando partidas contra um time italiano.

"Disseram-nos que fomos nós que levamos o futebol aos Estados Unidos", disse Royer-Souef, 66, por meio de um intérprete. "Orgulho-me muito disso".

O treinador daquele time de Reims, Pierre Geoffroy, treinava a seleção francesa. Para a partida contra a Holanda em 1971, as jogadoras recordam ter corrido por colinas arenosas e feito longas caminhadas em florestas.

Um cartaz anunciando o jogo sobreviveu, como parte de uma exposição itinerante sobre a Copa do Mundo, e menciona que a partida serviria como preparativo para o "campeonato mundial". Royer-Soeuf recorda de Geoffroy dizendo à seleção que elas precisavam jogar bem porque "com uma vitória iremos ao México". A França marcou o primeiro gol bem cedo, ela diz, e o time conseguiu relaxar.

Outras jogadoras recordam que Geoffroy preferiu não falar sobre a Copa do Mundo extra-oficial, talvez para evitar nervosismo no time.

"Só descobrimos depois do jogo", disse Guyard.

Uma das melhores jogadoras da equipe, a ponta Michele Wolf, ficou de fora da partida, disseram colegas de time, porque não conseguiu quem a substituísse em seu trabalho como caixa em uma mercearia.

"Éramos amadoras, não profissionais", disse Royer-Souef. "Ela tinha de trabalhar para comer. Não ia arriscar perder o emprego por causa de um jogo de futebol".

Marie-Bernadette Thomas, que jogou pela França em uma partida não oficial, em 1971
Marie-Bernadette Thomas, que jogou pela França em uma partida extra-oficial, em 1971 - Pete Kiehart/The New York Times

Wolf também ficou de fora da Copa do Mundo extra-oficial disputada no México em agosto, dizem colegas da seleção. O torneio envolveu seis seleções: quatro europeias e duas latino-americanas. As despesas de viagem das seleções foram cobertas pela Martini & Rossi, uma fabricante italiana de bebidas que organizou a competição; o mais absurdo chauvinismo predominava durante os preparativos para o torneio.

Um artigo da agência de notícias UPI foi publicado pelo The New York Times em 27 de junho de 1971, com a manchete: "Ao sul da fronteira, o futebol é sexy". As trave seriam pintadas de cor de rosa, e os calções das jogadoras seriam "tão apertados quanto possível", afirmava o artigo, acrescentando que haveria "salões de beleza" nos vestiários para que "as meninas possam se apresentar para entrevistas e cerimônias públicas com cílios postiços, batom e penteados atraentes".

Uma foto do torneio parece mostrar traves pintadas de rosa e branco. Mas outras fotos mostram que os organizadores talvez tenham mostrado algum juízo quanto a uniformes e salões de beleza nos vestiários, de acordo com a historiadora Williams.

Ratignier, meio-campista da seleção francesa em 1971 e recentemente aposentada como professora de educação física, diz que não se lembra de os organizadores terem tentado fazer com que as jogadoras parecessem mais sexy.

A Dinamarca ficou com o título do torneio de 1971, derrotando o México por 3 a 0 na final, no Estádio Azteca, diante de 110 mil espectadores. A França terminou em quinto, derrotando a Inglaterra por 3 a 2 em um jogo de consolação. Royer-Souef marcou o gol da vitória.

As jogadoras francesas cantaram a Marselhesa, o hino de seu país, e Royer-Souef diz que representar a renovação do futebol feminino é causa de orgulho para ela. Mas Guyard afirma que, de certa forma, ela e suas colegas não tinham a sensação de representar o país, ao contrário do que acontece com as jogadoras atuais.

Diferentemente do que acontece hoje, o torneio de 1971 não recebeu grande cobertura na França. "Ninguém sabia que a seleção feminina estava jogando no México", disse Guyard. "Como você acha que nos sentíamos a respeito?"

Ratignier, 65, diz que tem sentimentos contraditórios sobre a trajetória do futebol feminino, na França e em outros países. Falando por meio de um intérprete, ela explicou que se sente "muito privilegiada" por ter podido jogar uma Copa do Mundo, ainda que extra-oficial, aos 17 anos. E ela aplaudiu os recentes avanços do futebol feminino, embora ressalvasse que elas são lentos e "ainda insuficientes".

"Jogamos em 1971 e foram precisos mais 20 anos para a primeira Copa do Mundo feminina oficial", disse Ratignier. "A evolução me deixa feliz. Mas não sei o que sentir quanto a toda essa demora".

Tradução de Paulo Migliacci

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