Fundo chama tragédia da Chape de 'incidente' em pagamento a famílias

Empresa ofereceu US$ 225 mil a parentes de vítimas que aceitassem exigências

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São Paulo

Com o nome de fundo de assistência humanitária, a resseguradora Tokio Marine Kiln ofereceu o pagamento de US$ 225 mil (R$ 916 mil) para cada família das vítimas da tragédia da Chapecoense, ocorrida em novembro de 2016, nos arredores de Medellín (Colômbia).

No texto do acordo, obtido pela Folha, a empresa responsável pelo resseguro da aeronave chama 16 vezes a queda do avião, em que morreram 71 pessoas, de “incidente”.

Pela definição da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), incidente “é uma ocorrência, que não um acidente, associada à operação de uma aeronave, que afeta ou possa afetar a segurança da aeronave”.

Equipe de resgate trabalha no local do acidente com o voo da Chapecoense, em 2016
Equipe de resgate trabalha no local do acidente com o voo da Chapecoense, em 2016 - Jaime Saldarriaga - 29.nov.2019/REUTERS

Acidente é toda ocorrência relacionada à operação de uma aeronave em que qualquer pessoa tenha sofrido lesões graves ou morrido.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, o documento pode ser contestado na Justiça. No texto, a Tokio Marine Kiln diz que o fundo foi estabelecido por “razões de compaixão”. Até agora, 23 famílias aceitaram os termos do acordo.

“Continuamos proativamente comprometidos com as famílias e seus representantes por intermédio da Clyde & Co, o escritório de advocacia que administra o fundo em nome das empresas resseguradoras. Temos a expectativa de que outras famílias se beneficiarão dessa iniciativa”, afirmou em nota a assessoria de imprensa da resseguradora.

Os familiares das vítimas que não aceitaram os valores desse fundo ainda estão na Justiça. Eles requisitam a quitação da apólice de seguros da aeronave. De acordo com o advogado Marcel Camilo, que defende nove famílias, estas podem receber um valor de US$ 2 milhões a US$ 4 milhões se vencerem a ação (de R$ 8,1 milhões a R$ 16,2 milhões).

Os processos são contra a Tokio Marine Kiln, Bisa (ambas resseguradoras) e a Aon, corretora da apólice. As companhias alegam que ela não tem de ser paga porque a LaMia, empresa aérea boliviana, não poderia voar para a Colômbia.

“Eles estão chamando de pagamento voluntário para não admitirem a responsabilidade civil. Por isso alegam que o acidente não estaria coberto pela apólice. Eles não têm essa certeza, senão não estariam preocupados em indenizar e obter exoneração de qualquer outra obrigação. Nos termos do ordenamento jurídico brasileiro e mesmo no direito internacional, a tentativa nos parece inócua”, afirma Rita Taliba, sócia da Taliba Advogados.

Para ela, o uso do termo “pagamento voluntário” é equivocado porque seguradora e resseguradoras não têm como objetivo social o auxílio a vítimas ou familiares. “A relação delas com os acidentados é um negócio, e o pagamento aos familiares das vítimas, exonerando a seguradora e resseguradoras de qualquer outra obrigação, é indenização”, completa.

No termo de quitação, registrado no 1º tabelionato de notas e protesto de Chapecó, as famílias se comprometem a uma série de deveres e restrições para justificar o recebimento do dinheiro.

Elas concordam em não processar as resseguradoras ou a LaMia e desistir de ações que tenham sido abertas não só no Brasil, mas em qualquer outro país. Também aceitam os US$ 225 mil como “único valor disponível".

Comprometem-se ainda com a não existência de qualquer outro herdeiro legal de uma das vítimas que possa reivindicar indenizações; a não solicitar outros pagamentos no futuro; autorizam a Tokio Marine Kiln a apresentar o documento como prova para que qualquer reclamação judicial seja extinta; tornam-se obrigadas a reembolsar a resseguradora de custos processuais anteriores; e ficam proibidas de apresentar o pagamento como prova de admissão de culpa no acidente por parte de qualquer uma das empresas envolvidas (seguradoras ou a LaMia), de suas subsidiárias e parceiras ou até de seus diretores e acionistas.

“O termo de quitação é um negócio jurídico regular, mas não significa que não possa ser contestado. Se for comprovado vício de consentimento de alguma das famílias ou se surgir um fato novo na alçada da responsabilização dessas empresas do seguro, esse acordo humanitário pode ser denunciado como um arcabouço de regras para intimidar as vítimas”, diz o advogado Rafael de Moura Campos, especializado em direito empresarial.

O documento cita de forma expressa que não estão exonerados de responsabilidades o casal Ricardo Albacete e Loredana Albacete, donos da aeronave na época do acidente. A LaMia, porém, está incluída como uma das empresas que não podem ser processadas pelas famílias.

A Folha questionou a Tokio Marine Kiln sobre o uso da palavra “incidente” no documento, sobre a possibilidade do fundo humanitário ser contestado no futuro e quanto à exclusão de Ricardo e Loredana Albacete.

“Os termos completos do acordo são confidenciais e não podemos comentar detalhes”, respondeu a assessoria da empresa. A reportagem não conseguiu entrar em contato com os Albacetes.

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