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The New York Times

O que o futebol pode fazer é não ser mais espaço seguro para racistas

Não existe razão para que jogadores atuem em país com histórico de discriminação

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Rory Smith
Manchester | The New York Times

Raheem Sterling é muitas coisas: talvez o melhor jogador inglês de sua geração; um astro em seu clube, o Manchester City, e na seleção de seu país; uma voz ponderada mas insistente quanto à questão do racismo, no futebol e fora dele. Mas ele não é, e ninguém deveria esperar que fosse, um especialista nas complicações da política búlgara.

Na terça-feira (14), poucas horas depois que Sterling e seus colegas de seleção inglesa foram submetidos a abusos racistas incessantes durante uma partida da fase classificatória da Eurocopa contra a Bulgária, em Sófia —abusos tão graves que a partida foi interrompida por duas vezes, para alertar a torcida que o jogo poderia ser encerrado caso as agressões continuassem; tão graves que o capitão da seleção búlgara, Ivelin Popov, pediu aos torcedores de seu time que parassem; tão grave que diversos membros da comissão técnica multirracial da Inglaterra se sentiram visivelmente ofendidos; tão graves que o resultado, uma vitória da Inglaterra por 6 a 0, não será mais que uma nota de pé de página—, Sterling tuitou uma mensagem de agradecimento ao primeiro-ministro búlgaro Boyko Borisov.

Na superfície, o motivo parecia fácil de compreender: Borisov tinha, afinal, exigido a demissão de Boris Mihaylov, o presidente da federação de futebol da Bulgária, como penitência por uma noite que trouxe condenação internacional ao país. Em uma possível violação das regras da Fifa sobre interferência governamental, ele ordenou que o Ministério do Esporte congele a verba da federação de futebol até que Mihaylov se demita.

Ações rápidas e decididas como essa são certamente elogiáveis, ou pelo menos é isso que Sterling compreensivelmente parece ter pensado. A complicação é que  Borisov —líder de um partido de centro-direita— só está no poder com a ajuda de uma coalizão que inclui uma facção chamada Patriotas Unidos, um grupo de três partidos de extrema direita acusados de "estabelecer a xenofobia como política de governo". E aquilo que aconteceu na segunda-feira em Sófia está longe de ter sido um incidente isolado.

A temporada do futebol europeu começou há apenas algumas semanas, mas já oferece uma litania de exemplos de jogadores submetidos a abusos racistas, entre os quais pelo menos três na Itália: Romelu Lukaku, durante um jogo em Cagliari; Dalbert, da Fiorentina, em uma partida contra a Atalanta; e Franck Kessie em Verona. A mídia social produziu ainda mais bílis, mais recentemente com relação a Paul Pogba, do Manchester United, e Tammy Abraham, do Chelsea. E esses são apenas os casos de maior destaque.

Aconteceu a mesma coisa na temporada passada, o que inclui um incidente que ajudou Sterling a encontrar sua voz sobre o tópico, e na temporada anterior. É difícil quantificar se o problema do racismo no futebol europeu está se agravando. Mas é fácil perceber que a situação com certeza não está melhorando.

A vergonha de Sófia não é única, nesse contexto, mas é instrutiva de duas maneiras. Uma é ilustrada pela questão que levou Sterling à sua mensagem ingênua. Aleksander Ceferin, o presidente da Uefa, a organização que comanda o futebol europeu, indicou depois do acontecido na noite de segunda-feira que a ascensão do nacionalismo em todo o continente alimentou alguns comportamentos inaceitáveis, e que certas pessoas pareciam ter chegado à conclusão de que uma torcida de futebol é o ambiente correto no qual expressar suas opiniões repulsivas.

Raheem Sterling durante a partida entre Inglaterra e Bulgária
Raheem Sterling durante a partida entre Inglaterra e Bulgária - Carl Recine - 14.out.2019/Reuters

A Bulgária serve como exemplo: é difícil ver de que maneira o futebol poderia ficar imune às correntes que levaram três partidos de extrema direita à coalizão governista do país, e que encorajam cerca de duas mil pessoas por ano a participar da Marcha Lukov, uma manifestação honrando um general simpatizante do nazismo que acontece em Sófia a cada mês de fevereiro.

Só porque racismo existe na sociedade não significa, afinal, que sua existência deveria ser permitida no ambiente fechado do futebol. No passado, a ideia era provar que os racistas estavam errados vencendo em campo —como se jogadores negros que sofrem abusos e perdem partidas, porque jogam por times mais fracos, fossem de alguma forma cúmplices na punição que recebem—, mas já foi provado que isso não funciona. O mesmo vale para a crença em que parar os jogos em que ocorrem manifestações racistas de alguma maneira significava dar aos racistas o que eles querem.

É quanto a isso que o acontecido em Sófia oferece sua segunda lição. Os jogadores da Inglaterra sofreram abusos em um estádio que estava operando com capacidade limitada devido a incidentes semelhantes de racismo em um jogo anterior, e o próximo jogo da Bulgária estará sujeito a um fechamento parcial do estádio pelo mesmo motivo. As multas pífias da Uefa por delitos de racismo há muito são motivo de piada, a despeito dos protestos de Ceferin em contrário.

Se ele quer cumprir a promessa que fez esta semana de "entrar em guerra" contra os racistas —o que, como ele disse, precisaria envolver uma aliança de ligas, clubes, federações, governos e todo mundo mais— será preciso usar o arsenal real de que dispõe.

Torcida da Bulgária mostra camisa com mensagem "no respect" contra campanha da Uefa
Torcida da Bulgária mostra camisa com mensagem "no respect" contra campanha da Uefa - Carl Racine/Reuters

Muita gente defenderia a exclusão pura e simples, no caso de países reincidentes, como a Bulgária. No entanto, se existe algum medo de que isso leve os búlgaros a se sentirem vítimas —ainda que seja necessário apontar que no coração de todo pensamento de extrema direita existe um senso distorcido de perseguição—, talvez exista uma solução mais simples ao alcance.

Não existe motivo para que qualquer jogador, negro ou branco, deva jogar em um país que tem um histórico de abusos racistas. Talvez, portanto, as nações em que isso ocorre com frequência deprimente devam a ser forçadas a jogar todas as suas partidas fora de casa. A mesma punição poderia ser aplicada aos clubes, em lugar de permitir que eles joguem em casa mas sem torcida.

Nenhuma dessas punições, é claro, vai acabar com o problema do racismo na sociedade. Mas não é essa a função do futebol. Tudo que o futebol pode fazer é garantir que não seja mais um espaço seguro para aqueles que têm essas opiniões e as expressam. O que aconteceu em Sófia demonstra a escala e a natureza do problema. O teste que o esporte precisa superar é provar que não se deixa intimidar por isso.

Tradução de Paulo Migliacci

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