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Badalados, técnicos portugueses sofrem para obter 'diploma' em seu país

Número reduzido de vagas em cursos de formação gera críticas à federação de Portugal

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Marcus Alves
Lisboa

Sensação com o Palmeiras, Abel Ferreira deu adeus aos gramados precocemente, aos 31 anos, devido a uma lesão. Partiu em seguida para o banco de reservas e não tardou a mostrar serviço.

No comando do time sub-19 do Sporting, viu seus garotos enfiarem 4 a 0 no Liverpool, baterem o Arsenal por 3 a 1 e pararem apenas no Aston Villa de um endiabrado Jack Grealish, hoje destaque da seleção inglesa, em um dos principais torneios de base da Europa, em 2013.

“Não me interessa se é um prodígio do futuro. Quem não quer correr, vai sair deste clube”, cobrava seus jogadores publicamente.

Foi premiado com quatro anos de contrato e a chance de completar o seu aprendizado como técnico no time português.

Nem tudo aconteceu como esperado, mas, ainda assim, aos 36 anos, conseguiu um de seus objetivos iniciais: tirar a licença máxima, o Uefa Pro, equivalente ao quarto e último nível de formação. Abel estava livre para trabalhar onde quisesse, com plenos poderes, a partir de então.

A despeito da fama de sua escola de treinadores, essa é uma realidade cada vez mais distante em Portugal. Ao longo das últimas temporadas, cresceu o número de profissionais que chegam à sua elite sem a devida habilitação, gerando um debate que tem colocado a federação portuguesa e as condições de acesso aos seus cursos contra a parede. Uma petição pública com 2.000 assinaturas cobra mais vagas, critérios mais justos e mais clareza no processo de seleção.

Não são poucos os que pregam demorar mais tempo no país para obter o diploma de técnico do que o de médico, com relatos, inclusive, de uma espera que pode alcançar dez anos.

A exemplo da Premier League e outros campeonatos badalados ao redor do continente, é obrigatório contar com o Uefa Pro para treinar na primeira divisão em Portugal, mas não tem funcionado exatamente assim na prática.

Uma mostra disso foi a última edição da Liga Europa: dois de seus quatro representantes na fase de mata-mata não tinham treinadores com o grau exigido para a competição. Sem isso, eles constavam na súmula como assistentes, não podiam se levantar no banco para orientar seus atletas nem mesmo dar entrevistas antes e depois do jogo. Em suma, estavam impedidos de desempenhar suas funções por completo.

O técnico português Sérgio Vieira, que fez relativo sucesso na Ferroviária e passou pelo Athletico, viveu isso na pele.

Ao retornar do Brasil, em 2017, ele assumiu o Moreirense na Liga Portuguesa, mas, como não tinha o quarto nível, viu o seu campo de influência na área técnica ser limitado pelas restrições que enfrentou.

“Quando você tem de ficar sentado, sua perspectiva do jogo é diferente, alguns bancos não têm o melhor ângulo para acompanhar a partida. Acima de tudo, você não tem liberdade para interagir quando necessário, precisar passar a instrução através de seu auxiliar e isso condiciona toda a comunicação até o jogador”, explica Vieira.

Mas as dificuldades não pararam nisso. Ao fazer o terceiro grau, ele esbarrou em um entrave inesperado: a federação portuguesa não aceitou os mais de 50 jogos que dirigiu no futebol brasileiro como parte de seu estágio obrigatório e desconsiderou a sua experiência do outro lado do oceano. “Houve um pouco de radicalismo no processo”, opina.

Na última temporada, Vieira conduziu o Farense para a elite portuguesa e tem se firmado como uma das referências da nova geração local. Desde julho, a cada pausa para data Fifa, ele viaja até Lisboa para frequentar as aulas do curso Uefa Pro. A concorrência para entrar não foi fácil: teve de ficar entre os 40 primeiros em um universo de 199 candidatos.

A mesma sorte não teve o ex-goleiro Peçanha, que surgiu no Flamengo e construiu carreira em Portugal. Ele foi o brasileiro mais bem colocado, porém, não passou da lista de suplentes.

“Não me senti prejudicado porque, no meu caso específico, eu estava desempregado e, por isso, não cumpria parte dos requisitos. Tive passagem recente por um clube, mas, com a mudança de investidor, acabei saindo. Preciso de uma oportunidade para voltar”, afirma o carioca radicado em Paços de Ferreira.

A briga para entrar no curso do terceiro nível foi ainda mais ferrenha, com 460 profissionais competindo por 30 vagas. No fim das contas, entre outros, ficou de fora Luís Freire, que, mesmo após subir de divisão seis vezes em oito anos, não foi aceito. A sua ausência causou grande indignação e reforçou a impressão de que a federação portuguesa não valoriza suficientemente o mérito esportivo.

Freire já havia protagonizado um episódio insólito em agosto, após garantir o acesso com o Nacional da Madeira. Na cerimônia de gala para os destaques, o prêmio de melhor treinador foi entregue ao seu auxiliar, Joaquim Rodrigues, que ocupava o posto principal somente por possuir o terceiro nível pedido no campeonato.

Agora na primeira divisão, a situação ganhou outros contornos: como nem Freire e Rodrigues têm o Uefa Pro, foi necessário trazer um novo membro com essa credencial para se juntar à comissão técnica e cumprir com a exigência.

Rúben Amorim, do Sporting, é um dos técnicos da elite portuguesa sem licença Uefa Pro
Rúben Amorim, do Sporting, é um dos técnicos da elite portuguesa sem licença Uefa Pro - Patricia de Melo Moreira - 28.nov.20/AFP

Nem mesmo os grandes escapam disso: esse é também o dia a dia de Rúben Amorim, que se tornou o terceiro treinador mais caro da história do futebol em março, após o Sporting topar pagar a sua multa de 10 milhões de euros (R$ 60 milhões) ao Braga, mas que não conta com a licença máxima.

“Não acredito de forma alguma que isso coloque em dúvida a escola portuguesa. Os treinadores não são formados apenas na teoria”, analisa Vieira. “É uma situação realmente ilegal, que não deveria acontecer, mas não quer dizer que seja integralmente errada. Temos que lutar para que isso não ocorra, para que todos tenham formação, porém não é um crime”, completa.

A princípio, a Uefa permite a realização do curso de quarto nível a cada dois anos, mas é possível solicitar a abertura de novas classes em situações excepcionais, como a demanda elevada de interessados.

Existem hoje no país ao redor de 900 treinadores com a licença Uefa Pro. A federação portuguesa não respondeu aos contatos da reportagem até a publicação desta matéria.

O curso Uefa Pro em Portugal

Custo: 4.750 mil euros (R$ 28.725)
Duração: 376 horas
Concorrência: aprovou 40 de 199 candidatos na última edição, em julho

- Portugal tem ao redor de 11 mil técnicos de futebol inscritos no Instituto Português do Desporto e da Juventude (IDPJ)

- José Mourinho, André Villas-Boas, Nuno Espírito Santo e outros nomes completaram seus cursos em países como Escócia e Irlanda do Norte para fugirem da burocracia portuguesa

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