“Deixa eu ver, deixa eu ver... Ooooooh, shit.”
Era a primeira vez que Hebert Conceição, 23, via pela televisão o momento que lhe deu a medalha de ouro no boxe. O “shit” (merda, em inglês) foi dito em tom de admiração quando assistiu ao cruzado de esquerda explodir no queixo do ucraniano Oleksandr Khyzhniak, 26, invicto desde 2016.
O segundo medalhista de ouro da história do boxe olímpico do país continuou a caminhar em seguida, sem acreditar. Era difícil mesmo. Foi a primeira vez que nocauteou um adversário numa luta internacional. A situação era difícil até então. Conceição perdeu os dois primeiros rounds, na visão dos juízes.
O baiano entrou para o terceiro e último assalto com uma única opção para vencer: nocautear o oponente, acertar um soco que o levaria ao lugar mais alto do pódio. Era lona ou nada.
Faltando menos da metade dos três minutos para a final olímpica, Hebert Conceição tentou primeiro com a mão direita, de cima para baixo; o ucraniano revidou e abriu o espaço para o soco decisivo entrar.
Um ataque que Conceição afirma treinar sempre que parte para o confronto aberto. Golpe ideal para momentos como aquele. “Apesar da pontuação adversa, eu sabia que em três minutos dava para mudar tudo com um nocaute. Se vocês observarem, no início do round, fui para a trocação franca. Pensei: ‘Se eu tomar um nocaute aqui, não interessa, já estou perdido mesmo’. Sabia que na trocação era loteria.”
Se era loteria, Conceição acertou no milhar. Khyzhniak caiu. Dezoito segundos depois, o brasileiro também estava no chão, mas para chorar de alegria. Era ouro. Não apenas o segundo do Brasil no boxe em Jogos, mas o segundo da Bahia. Na Rio-2016, Robson Conceição (não são parentes), também foi campeão.
“Não sou um nocauteador, sou um estilista do boxe. Eu sabia que seria possível, mas não imaginava que aconteceria na final olímpica. Sou um cara mais estiloso”, disse o lutador da categoria até 75 kg.
O “merda” em inglês foi o palavrão mais leve dito pelo pugilista ao longo da competição.
Nas quartas de final, a comemoração de Conceição levou o COI (Comitê Olímpico Internacional) a dar uma bronca na equipe. “Eu sou medalhista olímpico, caralho! Eu mereço pra caralho! Nós trabalhamos pra caralho, porra!”, disse logo após a luta que já lhe garantia ao menos o bronze.
A comissão técnica, então, escolheu outra palavra. Decidiu usar “rocambole”, uma piada interna sem grande significado. Quando ganhou a semifinal, a brasileira Bia Ferreira gritou: “É Brasil, rocambole!”.
Conceição até tentou fazer sua parte, mas não deu muito certo. “É Brasil! É Brasil!”, gritava para a câmera de TV. “Rocambole pra não gritar caralho”, soltou sem pudor nem esforço para demonstrar que havia entendido o puxão de orelha. Ele afirma nem se lembrar de ter feito isso. “Fiquei anestesiado com o momento. Quer dizer, eu acho que não xinguei, né? Extravasei tanto... Se eu xinguei, me perdoa. No final eu queria soltar aquele palavrão de desabafo. Falei ‘rocambole’ para representar o descarrego.”
Nascido em Salvador, o medalhista de ouro começou a lutar aos 15 anos de idade na capital baiana. Conceição é cria de um dos maiores nomes da modalidade, o ex-campeão mundial Luiz Dórea, fundador da Academia Champions, para quem “a Bahia é o coração do boxe no Brasil”.
O atleta é definido pelos treinadores como inteligente, determinado, humilde, competitivo, emotivo. E divertido. Após as vitórias, ele foi visto a dançar e a cantar. Antes de entrar no ringue para receber a desejada medalha de ouro, sua voz ecoava pela Kokugikan Arena, um templo do sumô, com imagens de lutadores históricos espalhadas pelos corredores até a estação de metrô que dá acesso ao local.
Nas entrevistas, o pugilista, sempre leve, arranca risadas pela espontaneidade. Em entrevista à TV Globo, neste sábado (7), por exemplo, pediu desculpas por tomar tempo para fazer alguns agradecimentos, porque sabe que os minutos da emissora são “caros”.
Fã de Olodum, entrou no ringue em toda a competição ao som de “Madiba”, música do grupo baiano que faz referência a Nelson Mandela, um “nobre guerreiro, negro de alma leve, nobre guerreiro, negro lutador”, uma letra de resistência ao preconceito racial que ainda persiste no Brasil. “Sempre entro para lutar com esse grande hino porque no século 21 a gente ainda convive com casos de racismo.”
Militar da Marinha, Conceição prestou continência no pódio, enquanto ouvia o hino brasileiro. Depois, lamentou a atual situação do país, assolado pela pandemia. “A nossa nação está passando por um momento difícil, e fico muito feliz de premiá-la com uma medalha de ouro. Num momento tão caótico, qualquer sorriso é válido. Fico feliz de passar um momento de felicidade no meio de tanta tristeza.”
O que Conceição fez foi tão incrível que até integrantes da delegação de boxe, os mesmos responsáveis por pedirem a ele para evitar palavrões, não resistiram. "O Hebert é foda."
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