Em junho de 1975, Paulo Francis noticiava na Folha a estreia de Pelé em Nova York, no time do Cosmos, “uma dependência do conglomerado Warner”.
Foi “primeira página do New York Times, que chegou a saudar Pelé em editorial”. Ocupou “os três noticiários nacionais, da CBS, NBC e ABC”. O jogo “lotou o estádio, televisado para 20 países”.
Mas era “sem nenhuma importância esportiva”, só mesmo para a “implantação da marca Pelé nos EUA”, parte de uma campanha da “Pepsi-Cola, que teve a ideia de usar o jogador promovendo seus refrigerantes em escala mundial”.
Foi uma das suas primeiras colaborações. Antes do fim daquele ano, Francis seria contratado em definitivo por Cláudio Abramo, que havia retornado à chefia do jornal para uma reforma que refletisse a mudança política no país.
Era o início da abertura, a oposição tinha acabado de vencer uma eleição. “Começamos a levar gente boa, como o Paulo Francis”, escreveu Abramo em “A Regra do Jogo” (Companhia das Letras, 1989).
O correspondente ficou 15 anos na Folha e se tornou a sua face pública, com um jornalismo iconoclasta, brilhante e irresponsável. Publicou mais de 8.000 textos, em quase todos os cadernos. Pelas suas contas, a certa altura, produzia nove por semana.
Escrevia dos Estados Unidos e ficou marcado pelas colunas na Ilustrada, sob o título genérico de Diário da Corte. Na descrição dele mesmo, “se dei uma contribuição ao jornalismo brasileiro, foi a de desmistificar os EUA”.
Carioca, chegou ao jornal já com extensa carreira em redação. Mas começou, na verdade, no palco. Foi ator, chegando a ser indicado como revelação, e diretor, tendo encenado “Pedro Mico”, de Antônio Callado, com cenário de Oscar Niemeyer.
Seu nome era Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn. Paschoal Carlos Magno, diplomata e teatrólogo, ao aceitá-lo numa turnê de sua companhia, trocou para Paulo Francis. “Nome de bailarino de teatro de revista”, lamentava Francis.
Passou do palco para o Diário Carioca, com uma extensa coluna quase diária sobre teatro. Elogiava Cacilda Becker e sobretudo Fernanda Montenegro, mas o episódio que o marcou foi um texto ofensivo à atriz Tônia Carrero, com insinuação de promiscuidade.
Em episódio célebre, o ator Paulo Autran e o diretor italiano Adolfo Celi, então marido de Tônia, foram tirar satisfação. O primeiro deu uma cusparada, o segundo o agrediu com socos.
Então à esquerda e nacionalista, Francis passou a abordar política cada vez mais e acabou sendo chamado para o trabalhista Última Hora. Por dois anos, até o golpe de 1964, publicou a coluna diária “Paulo Francis informa e comenta” no canto direito da página 3, de alto a baixo.
Depois foi editor de cultura do Correio da Manhã, então o principal do país, e escreveu no semanário O Pasquim ao lado dos amigos Millôr Fernandes e Henfil. Preso quatro vezes pela ditadura, mudou-se para Nova York.
Já tinha vivido lá com o pai, executivo da petroleira Esso, mas na época só pensava em teatro. Na Folha, de início, sua área de preferência foi política internacional, mas logo estava por todo lado, da cultura à economia, inclusive atrás de furos.
O que mais marcou, pelo menos nos primeiros anos, foi um relatório do Banco Mundial que ele obteve no final dos anos 1970, noticiou e enviou para o jornal, resultando num caderno especial que mobilizou, entre outros, o jovem economista Eduardo Suplicy.
Foi então que veio a público, a partir de uma nota de rodapé no relatório, que a instituição havia adotado 22,5% como inflação para 1973 “em vez do dado oficial de 12,6%”, manipulado pela ditadura para conter o reajuste de salários e preços.
Passado um mês, Lula, então no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, abriu campanha com base no relatório. Mais alguns meses e, ao receber o contracheque sem a reposição, os trabalhadores da Scania desligaram as máquinas, disparando o movimento histórico.
“Aos 50 anos, politicamente, continuo, de coração, na esquerda”, escreveu Francis nas breves memórias que publicou em 1980. Mas já estava de mudança para a direita, afirmando no jornal, por exemplo, sua “suspeita crescente de qualquer Estado”.
A virada ganhou forma mais definida em 1985, num texto sobre o economista Roberto Campos, que tinha sido seu alvo por dez anos —como quase sempre, com insinuações de promiscuidade. Afirmou então que ele “melhora horrores, em pessoa”:
“Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. Cheguei à conclusão de que o capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, a suposta saída que se propõe no Brasil, de o Estado assumir e administrar, leva à perpetuação do atraso.”
Partiu daí para ataques preconceituosos à prefeita Luiza Erundina e depois apoio aberto à eleição de Fernando Collor. Descreveu-o como “alto, bonito e branco, branco ocidental. É outra imagem do Brasil, com que fui criado, francamente”.
Dois meses após assumir, em 1990, Collor ordenou a invasão do jornal pela Polícia Federal. Francis de início criticou, mas logo voltou aos elogios ao presidente —e a provocações racistas, por exemplo, sobre um garçom “crioulo” que o teria levado a pensar em “chibata”.
Deixou a Folha no final daquele ano, passando a escrever nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, até sua morte, em 1997.
Leia trechos de colunas de Paulo Francis
A função da imprensa é ajudar os poderes da Terra a dirigirem o povo. Em países ditos socialistas, canta as glórias do socialismo. Em países ditos democráticos, as glórias do sistema [...] desde que o sistema (o capitalismo) não seja contestado na base, na raiz. Os proprietários sabem que podem desafiar o sistema só até certo ponto, caso contrário seriam massacrados economicamente. Essas são as condições de trabalho. No que me toca, sempre procurei trabalhar onde me dessem liberdade
Vejo que o pivete José Guilherme Merquior está avançando corajosamente de cara contra meu punho, se aproveitando da oportunidade de comentar o livro de outro vagabundo, Pucci ou Gucci [o professor Davi Arrigucci Jr., da Unicamp], para me xingar. É justo. Afinal, [...] citei Merquior como o pior caráter da geração literária que agora completa 40 anos. Se vendeu a primeira vez por um chá. [...] Confesso que sem ter sequer lido o que o pivete escreveu pensei em dedicar-lhe um artigo, contando o seu comportamento canalha na editora Civilização Brasileira, quando, nos idos de 1964, tendo um livro em provas [...], não ousava entrar na editora para examiná-las ou sequer recolhê-las, até que recebeu um ultimato da chefe de produção e veio, gordinho, rechonchudinho, rosado, a autêntica “menina” que esperamos encontrar no Itamaraty (e que é a exceção), o mau-caráter ferindo as narinas dos funcionários da editora que riam do pulha nos corredores
Almocei com Carlos Castello Branco. [...] Nossa conversa, como a de todos os jornalistas que se prezam, é impublicável. Notícia é o que não sai no jornal
Não é que o nosso ombudsman saiu com um artigo contra mim? [...] Era ardiloso, hum, claro. Disfarçava mencionando outros desafetos meus, como uns pitorescos negros que não cantam ou dançam e que são caçadores da minha cabeça (talvez devessem ser mandados para a instituição Smithsonian, como raridades), mas o objetivo era salvar a cara de Lula. Caio Túlio Costa é um quadro do PT e estava cumprindo o que se chamava no velho PC de “tarefa”, não servia a este jornal, mas ao PT. O artigo era extremamente presunçoso. Caio Túlio se propunha, do alto de sua superioridade, explicar aos leitores pentelhos do jornal quem era eu, com as minhas “excentricidades”, e que eu não devia ser levado a sério como jornalista. O maior insulto que se pode fazer a um jornalista. A princípio pensei em não responder. Afinal, quem é Caio Túlio? Desponta para o anonimato. Só é conhecido de um círculo restrito de redações de São Paulo; no Rio não convém arriscar uma pergunta sobre sua identidade. É ignorada. O artigo dele não contestava um único fato enunciado por mim sobre a calamidade-Lula. Não, Lula é indefensável. Não, o objetivo, como notou Vargas Llosa, era minha “satanização”. Não se podendo discutir a mensagem, o negócio é desmoralizar o mensageiro. Havia também o fator pessoal. Eu sou bom. Caio Túlio é ruim. Eu sou famoso. Ele é obscuro. Ganho muito mais do que ele e, por ter ocupado um cargo de chefia neste jornal, Caio Túlio sabe. Eu estou no ápice da minha carreira. Ele é apenas um bedel de jornal
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