ONG cria município fictício para levar atenção à população em situação de rua

Além da demarcação simbólica, SP Invisível elaborou documento com relatos de pessoas sem moradia

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São Paulo (SP)

Todos os dias, Fátima Braz, 67, acorda em sua barraca na praça Marechal Deodoro, na região central de São Paulo, tranca a casa improvisada com um cadeado e sai para trabalhar. O cargo da mulher sem-teto, no entanto, foge ao convencional: Fátima é uma "resolvedora de problemas".

Ao menos é assim que a idosa que vive na rua há quatro anos caracteriza seu ofício. Com ares de mãe severa, Fátima dá conselhos e apazigua conflitos que surgem diariamente entre pessoas que, assim como ela, chamam a praça na região da Santa Cecília de lar.

O local é um dos pontos de atuação da SP Invisível, ONG que busca proporcionar assistência e visibilidade à população em situação de rua na capital paulista. A praça também faz parte da Terra dos Invisíveis, município fictício criado pela organização em parceria com a agência de publicidade iD\TBWA.

Carroça de pessoa em situação de rua, embaixo de viaduto
SP Invisível oferece refeições, itens de higiene e moletons a pessoas em situação de rua na capital paulista - Divulgação

Por meio de intervenções com grafite e da inserção de pins no Google Street View, a iniciativa tem o intuito de demarcar o território ocupado por 31.884 indivíduos sem moradia. Os desenvolvedores do projeto consideraram dados do Censo da População em Situação de Rua de 2021, realizado pela Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social).

"Usamos estatísticas da própria prefeitura para criar representações que evidenciem a população da cidade sendo ignorada pelas autoridades e pela sociedade", explica Sthefan Ko, diretor-executivo de criação na iD\TBWA.

Números mais recentes apontam que a população sem moradia é ainda maior: em novembro de 2023, mais de 62 mil pessoas estavam registradas no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais). E, de acordo com o Polo de Cidadania da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o número hoje é de 64.818 pessoas vivendo nas ruas da cidade de São Paulo.

Outro projeto da SP Invisível é um banco de alimentos mantido em parceria com o Instituto Capim Santo, que possibilita a distribuição de refeições ao longo do ano.

Segundo a ONG, o banco atende atualmente cerca de 50 mil pessoas. Em 2023, foram distribuídas mais de 28 toneladas de alimentos, incluindo 56 mil refeições. Além disso, durante o inverno, ocorrem doações de moletons e de kits de higiene, como parte da campanha anual Inverno Invisível.

Em março deste ano, a entidade desenvolveu, ainda, um plano de ações. O documento reúne dados do Censo da População em Situação de Rua de 2021 e traz relatos de 15 pessoas que vivem nestas condições.

O material foi entregue aos pré-candidatos à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL) e Tabata Amaral (PSB). "O objetivo é a conscientização dos pré-candidatos sobre a importância da opinião da população em situação de rua para a construção e o desenvolvimento de programas", diz André Soler, CEO da SP Invisível.

Os depoimentos coletados trazem desde sugestões de ações para amparar dependentes químicos até críticas à alimentação e às condições de higiene nos albergues. "Não está tendo água. No banheiro, é aquela sujeira. Tinha que melhorar tudo ali", relata Alex Miranda, 43, morador de um abrigo.

A SP Invisível é criadora, também, da Jornada de Emancipação, programa que capacita pessoas em situação de rua que já foram alocadas em centros de acolhimento. "A operação é focada em estruturação de renda. Oferecemos capacitação em gastronomia para pessoas que já se encontram em uma situação mais estável", afirma Ana Ceribelli, gerente de comunicação da ONG.

Neste ano, o programa deve formar quatro turmas de 25 alunos cada.

Quem são os invisíveis

Desde que a SP Invisível surgiu, há uma década, o perfil da população mudou consideravelmente, observa Soler: "Hoje, encontramos mais famílias, mulheres e crianças. No começo, víamos muita gente sem trabalho, pessoas que vieram para São Paulo atrás de alguma oportunidade e não deu certo. Agora, vemos muitas pessoas que tiveram problemas financeiros durante a pandemia".

Segundo relatório do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), publicado em setembro de 2023, quase 85% dos indivíduos sem moradia são homens. Do total de pessoas, aproximadamente 7% vivem com a família na rua.

Desemprego, problemas familiares, perda de moradia e alcoolismo e uso de drogas foram os principais motivos pelos quais indivíduos passaram a morar nas ruas.

Quanto à situação de trabalho, cerca de 15,5% são profissionais autônomos ou se sustentam fazendo bicos. Esse é o caso de Alex Miranda, 43, que ficou sem moradia há nove meses, quando se separou da esposa. Hoje, ele faz bicos como montador de palcos.

Alex passa as noites em um centro de acolhimento. "Falta água, a comida é ruim, e 200 pessoas precisam dividir um quarto", reclama. Ainda assim, estar em um abrigo é um passo para que Alex realize seu único sonho: sair da rua.

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