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O ano em que o brasileiro começou a perder a infantilidade

Batizado de Expedição Vaga-Lume, um grupo de três jovens sai de São Paulo em direção a povoamentos isolados da Amazônia, onde implanta bibliotecas em escolas públicas, treina professores e mobiliza a comunidade para transmitir às crianças o encantamento da leitura.

Na aventura de levar a luz das letras pela floresta, Sylvia Guimarães, Maria Tereza Meninberg e Laís Fleury conheceram a miséria das escolas ribeirinhas -não tinham nem ao menos lousa e giz. Livros com histórias infantis eram artigos tão distantes quanto um computador conectado à Internet.

Conseguiram o patrocínio de uma empresa financeira (Fináustria) e até o apoio de presidiários de Belém. Com a garantia de que ganhariam redução na pena se ajudassem a fabricar estruturas para guardar os livros, os detentos aderiram à expedição. A sala de visita da prisão recebeu um presente: uma biblioteca infantil e uma brinquedoteca para alegrar a visita dos filhos dos presos.

Donas de diplomas de faculdades renomadas e com chances de conseguir bons empregos, Sylvia, Maria Tereza e Laís, até pouco tempo atrás ainda adolescentes, encontraram na expedição prazer e até um significado novo para suas vidas - ao conduzirem luz, também ganharam luz.

Neste ano que se encerra, o fato mais importante é o efeito Vaga-Lume: nunca, em toda a história brasileira, se discutiu tanto a responsabilidade individual para a melhoria da comunidade.

Rompe-se a visão indigente e perversa de que os indivíduos são públicos apenas se ocupam cargos no poder oficial - e de que devemos, sempre, esperar pelas soluções dos governantes.

A atitude geral do brasileiro era, basicamente, infantil - muito desejo e pouca responsabilidade, dificuldade de perceber-se e, mais ainda, de perceber o outro. Isso é algo compreensível na criança, mas um sinal de retardamento mental num adulto. Para muitos, a cidadania ainda se encerra nos direitos - quase nunca nos deveres - e o compromisso com a comunidade limita-se ao voto a cada quatro anos.

Comandado por Milú Villela e por Luís Norberto Pascoal, o Ano Internacional do Voluntariado, num período de tantas crises, de racionamento de energia, de guerra no Afeganistão e do desmoronamento da Argentina, é o marco da passagem da infantilidade para a vida adulta.

Centenas de milhares de pessoas seduziram-se pela idéia de que cada um pode também ter dimensão pública - e de que melhorar seu entorno é uma questão de sobrevivência.

Nutre-se, nos grandes centros, a sensação de guerra civil. Os milionários, aqueles que mais teriam razões para gozar a vida, estão cercados de seguranças, trancafiados em fortalezas.

O que se viu, neste ano, foi a aceleração de um processo consistente na sociedade brasileira, baseado na redefinição do conceito de público, visto agora como algo que vai além do governo.

Nos dez últimos anos, disseminaram-se grupos de empresários e de executivos dispostos a enfrentar a "guerra civil brasileira", bancando programas sociais. Surgiram e cresceram entidades como Abrinq, Instituto Ayrton Senna, Viva Rio, Ethos, Cempec.

Não existe atualmente nenhuma empresa de grande porte (rigorosamente nenhuma) sem um projeto social ou cultural. Muitas delas estão dispostas a patrocinar experiências, que depois são oferecidas como modelos a serem reproduzidos no setor público.

O programa de agentes de saúde, por exemplo, um dos marcos na redução da mortalidade infantil, nasceu da experiência feita pela Pastoral da Criança. Aliás, muitas das grandes soluções nacionais contra a miséria, como a bolsa-escola, o médico de família ou a bolsa para combater o trabalho infantil, vieram de pequenas iniciativas da comunidade.

Quase todos os dias (e, mais uma vez, não exagero), tomo conhecimento de alguma novidade do estilo Expedição Vaga-Lume.

São pessoas - ricos, pobres, adolescentes e idosos - , que, sem esperar pela ação do governo, adotam praças, creches, escolas, hospitais, jardins públicos, canteiros, prisões, museus, asilos, favelas, reservas naturais. Criam cursinhos pré-vestibulares para pobres, recuperam patrimônios históricos. Testam novas maneiras de ensinar matemática, português, física, história, informática, artes, esportes; envolvem-se na formação de professores e de agentes comunitários.

Por acompanhar há duas décadas tais iniciativas de parceria e ter vivido três anos em Nova York - o quartel-general do terceiro setor e exemplo de cidade que se recuperou graças à participação da comunidade - , posso dizer, sem exagero e sem medo de errar, que o Brasil se transformou, com inúmeros acertos e erros, num extraordinário laboratório de experiências sociais.

PS - Preocupado com a guerra civil, um amigo ajudou a criar um dos mais notáveis movimentos de conscientização da importância da escola pública. Por causa dele, esse Réveillon, apesar das boas notícias mencionadas nesta coluna, terá um nó na garganta. Vítima da guerra civil, ele está sequestrado, o que nos faz lembrar com tristeza de que a adolescência de um país tem um alto custo.

 
 
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