Os
professores e os miseráveis
Sem que
nenhum representante da classe teatral percebesse qualquer
movimentação nos bastidores, o PT conseguiu
aprovar uma lei que dá aos professores o direito a
pagar meia-entrada nos espetáculos teatrais - pela
primeira vez, os professores ganharam semelhante benefício
cultural.
Aprovada
na Assembléia Legislativa de São Paulo, a medida
provocou a ira dos artistas, obrigados a assumir mais esse
custo. A mobilização contrária, lançada
depois da aprovação, começou com a publicação
na Internet de um texto do dramaturgo Oswaldo Mendes intitulado
"Demagogia eleitoreira com chapéu alheio".
"Por que não se cobra "meio-tributo"
de estudantes, aposentados e professores nos serviços
federais, estaduais e municipais?", criticou.
No mesmo
tom e seguindo linha de raciocínio semelhante, o presidente
da Associação dos Produtores de Espetáculos
Teatrais de São Paulo, Marcos Caruso, atacou: "Por
que não conceder o benefício aos sapateiros,
aos carpinteiros ou a qualquer outra categoria profissional?",
pergunta irritado.
Nem os
representantes dos professores defenderam o benefício:
"Os artistas não podem ser onerados. É
o Estado que tem de obter o subsídio", afirma
Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores
do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp).
O ex-metalúrgico
José Zico Prado, autor da lei, conta que sua percepção
da desigualdade se cristalizou quando assistiu à encenação
da peça "Morte e Vida Severina", de João
Cabral de Melo Neto. Apresentou, então, o projeto que
concede meia-entrada aos professores, convencido de que não
se pode separar educação de cultura. "Professor,
especialmente de escolas públicas, não têm
acesso a bens culturais por falta de dinheiro."
O ingresso
mais barato, por exemplo, do espetáculo "Les Misérables"
custa R$ 30. Não se sabe o fim do enredo: o fato é
que a meia-entrada é lei, e os produtores devem adaptar-se
às novas demandas, buscando soluções.
Os argumentos
das vítimas da lei são - vamos reconhecer -
bons. Afinal, por que favorecer só o professor? E mais:
por que a conta deveria cair nas costas de quem já
enfrenta dificuldades para produzir um espetáculo?
Mas, ao
mesmo tempo, o impulso do deputado do PT conduz a uma importante
reflexão, que parte de premissas óbvias: a educação
é o fator que mais contribui para a igualdade de oportunidades,
e a democratização das chances de progresso
profissional só ocorrerá com a melhoria das
escolas públicas, as quais, por sua vez, só
melhorarão com a valorização dos salários
e da formação dos professores.
É
impossível que exista um bom professor desconectado
das atividades culturais -sem acesso a livros, jornais, revistas,
exposições, filmes, espetáculos teatrais
e concertos.
Se consideramos
essas premissas corretas - e, em minha opinião, são
corretíssimas -, chegaremos à conclusão
de que os professores, especialmente os dos ensinos fundamental
e médio (e mais especialmente os das escolas públicas),
merecem da sociedade algum tipo de proteção
cultural.
Como o
efeito da concessão de regalias aos professores atinge
toda a sociedade, não se pode aqui acusar ninguém
de discriminação. Pode-se dizer, entretanto,
que, ao facultar a eles o benefício, alguém
está fazendo bonito com o chapéu alheio.
E, nesse
caso, levanta-se a questão da viabilidade - ou seja,
falta saber se existem recursos públicos disponíveis
para bancar a meia-entrada para mais uma categoria. E, se
existirem, será essa a melhor maneira de valorizar
o professor? Não seria melhor subsidiar a compra de
livros, revistas ou jornais? É aberto, aqui, mais um
imenso campo de possibilidades.
Há,
entretanto, algo mais viável - e que até ajudaria
a corrigir uma injustiça. Gastam-se milhões
mensalmente com incentivos fiscais para a produção
cultural -completam-se, agora, dez anos de vigência
da Lei Rouanet.
Aprovam-se
projetos valiosos e muita produção ordinária;
a rigor, cabe à comissão investigar não
essencialmente a qualidade, mas a legalidade das propostas.
Não é justo, porém, que a lei não
preveja algum tipo de contrapartida social, já que
sua aplicação requer uso de dinheiro público.
Contrapartida
social seria, por exemplo, estabelecer que uma cota de ingressos
para filmes, exposições e peças fosse
destinada a alunos e a professores de escolas públicas.
E que parte dos livros, muitos deles de altíssima qualidade,
fosse doada às bibliotecas.
Nem seria
necessário mudar a lei: bastaria que os empresários
que patrocinam os projetos exigissem que os filmes ou os espetáculos
oferecessem uma cota de ingresso a estudantes e a professores
de escolas públicas. "Faz sentido", reconhece
o ministro da Cultura, Francisco Weffort.
Se a sociedade
quiser, poderá ser criada - com dinheiro privado e
até público - uma bolsa que facilite o acesso
de professores a bens culturais.
No Brasil,
como todos sabemos, pior do que a escassez de recursos sociais
é o desperdício.
PS - Por
falar em professor, durante a semana passada recebi e-mails,
a maioria deles críticos, muitos até grosseiros,
sobre a coluna anterior, em que critiquei a mediocridade do
corporativismo universitário. Exemplo gritante: é
de uma estupidez sem tamanho lutar para que aposentados e
ativos ganhem o mesmo reajuste.
É
incrível que muita gente letrada não perceba
que o corporativismo é o caminho mais curto para privatizar
o ensino público. Como recebi várias críticas
que merecem reflexão, publiquei uma seleção
das cartas na seção Palavra
do Leitor.
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