Palavras brincam e dançam em 'ABCXYZ', livro de Sérgio Rodrigues e Daniel Kondo

Abecedário poético marca a estreia do escritor e colunista na literatura infantojuvenil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco

Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco - Editora Reco-Reco/Divulgação

Coimbra

Pode procurar no dicionário, pesquisar no Google, perguntar para o ChatGPT. Todos eles vão dizer que escritor é aquele que escreve (óbvio) e que usa palavras para criar diferentes tipos de texto. Verdade, é claro. Mas existe uma definição um pouco mais interessante —ou bem mais divertida. Escritor é a pessoa que brinca com as palavras.

É isso o que fazem o autor Sérgio Rodrigues e o ilustrador Daniel Kondo no novo livro "ABCXYZ", que a dupla acaba de lançar pela editora Reco-Reco.

"O livro tem uma liberdade muito grande e encara a literatura como brincadeira, em que a linguagem experimenta os seus próprios limites. Acho que esse é um dos papéis mais bonitos da arte da palavra", diz Rodrigues. Colunista da Folha e autor de diversos livros para adultos, ele agora estreia na escrita para crianças.

Com esse nome meio esquisito, "ABCXYZ" é um abecedário. Nele, todas as letras do alfabeto se transformam num poema curto e numa ilustração de página dupla. A brincadeira é a seguinte: cada texto é formado somente por palavras que começam com a mesma letra. Na letra A, por exemplo, só vale termos iniciados por A. No B, somente palavras com B. E assim por diante.

Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco
Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco - Editora Reco-Reco/Divulgação

Enquanto isso, as ilustrações pegam essa letra e torcem, espelham, invertem, destroem, reconstroem e se divertem com o símbolo, até formarem outra coisa.

Veja o exemplo do A. "Andorinha/ Abre/ As Asas:/ Abrigo", diz o poema. Já o desenho é feito a partir de diversos As de mãos dadas, lembrando as asas de uma andorinha, o voo de um pássaro, uma cadeia de montanhas ou outra imagem completamente diferente, dependendo do olhar e da leitura de cada um. Não existe resposta certa. O jogo é imaginar.

"Por ser um livro ilustrado, a gente acaba concluindo que ele é só para crianças", conta Kondo. "Mas não é assim. É uma obra infantil ampliada, no campo da poesia visual. Adultos também podem entrar nessa leitura brincante."

Embora "ABCXYZ" seja um livro redondinho, os autores não inventaram a roda. Abecedários são muito comuns na literatura infantojuvenil no mundo inteiro. Além disso, outros escritores ficaram conhecidos na história da literatura por também elaborarem brincadeiras com a língua e jogos com a linguagem.

Na França, por exemplo, um grupo chamado Oulipo (pronuncia-se "ulipô") ficou famoso por criar passatempos literários bem malucos. Assim como fez Rodrigues em "ABCXYZ", os membros dessa turma criaram várias regras e restrições na hora de escrever —entre elas, não usar uma letra específica ou desenvolver frases que ficam iguais quando lidas de trás para a frente. Um dos participantes, o francês Georges Perec, chegou a escrever um livro inteiro, com 300 páginas, sem usar nenhuma vez a letra E. Acredita?

Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco
Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco - Editora Reco-Reco/Divulgação

Mas o escritor mais famoso por brincar com a linguagem não fez parte do Oulipo. O irlandês James Joyce adorava inventar novas palavras e encontrar jeitos diferentes de colocá-las lado a lado, criando frases e textos que ninguém nunca tinha lido antes. No Brasil, Guimarães Rosa também fez isso. Nos seus contos e romances, ele produziu quase uma língua nova, que recria a melodia e o jeito de falar dos interiores de Minas Gerais.

Aliás, uma das palavras inventadas por Joyce é essa aqui: "verbivocovisual". Ela foi usada mais tarde pelos poetas brasileiros Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos na hora de explicar a poesia que eles estavam fazendo, chamada de poesia concreta. Segundo eles, um poema deveria ser sempre "verbivocovisual". Ou seja, tinha que ter três coisas ao mesmo tempo: texto ("verbi"), som ("voco") e imagem ("visual").

É exatamente essa a ideia por trás de "ABCXYZ". O abecedário mistura ilustrações e palavras escolhidas sob medida para serem lidas em voz alta. E até as letras menos famosas entram nessa dança.

"Kasa Kom K? KKK/ Kuando, Kamarada?", brinca a letra K com a ortografia. "Yara/ Ygara/ Yawara/ Y-agora?", diverte-se o Y, usando sons e termos tirados de idiomas indígenas, sobretudo das línguas tupis. Já o W forma os contornos de um conjunto de bandeirinhas de festa junina, organizando um poema que é praticamente só imagem.

Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco
Miolo do livro 'ABCXYZ', escrito por Sérgio Rodrigues e ilustrado por Daniel Kondo, da editora Reco-Reco - Editora Reco-Reco/Divulgação

"Hoje a escola enfatiza demais a normatividade, o certo e o errado segundo a gramática. São tempos muito moralizantes também. Parece que as histórias precisam sempre ensinar, instruir, moralizar, elevar, aprimorar, não sei mais o quê", afirma Rodrigues. "É como se fosse proibido falar do prazer das coisas. Do divertimento. Mas a literatura e a leitura deveriam ser antes de tudo uma atividade prazerosa."

"A gente não criou esse livro para ensinar nada nem para que ele tenha nenhuma função prática", completa Kondo. "A ideia é que seja uma experiência, uma entrada no campo da poesia visual. É para sorrir enquanto lê."

Ou podemos usar outras palavras e aproveitar para já entrar na brincadeira proposta pelos autores. Que tal desse jeito abaixo, por exemplo?

Para pessoas prosaicas, poesia pode parecer porcaria. Puro preconceito, porque poemas produzem passatempos profundamente prazerosos. Pegou?

Agora é sua vez.

ABCXYZ

  • Preço R$ 59,90 (64 págs.)
  • Autoria Sérgio Rodrigues e Daniel Kondo
  • Editora Reco-Reco
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.