São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 1999




Era uma vez um guardinha vermelho


FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Quando a Revolução Cultural foi detonada, em 66, estava chegando à Europa para uma temporada de seis meses. A cobertura da mídia não deixava dúvida de que estávamos diante de um fato histórico de proporções gigantescas.
Milhões de guardas vermelhos empunhando um livro também vermelho do presidente Mao sacudiam as estruturas culturais do país, queimavam prédios, humilhavam escritores. Parecia o fim de um mundo.

Trabalhadas pelo americano Andy Warhol, imagens de Mao se tornam ícones da pop art


Dois anos depois, em 68, o movimento estudantil sacudia o Ocidente. Dois anos de diferença, milhares de quilômetros de distância não atenuaram o fascínio que o radicalismo chinês exerceu sobre a juventude. O fascínio não se limitou ao campo estético, como por exemplo no filme “A Chinesa”, de Jean-Luc Godard.
Havia algo no fundo do coração, ligando os estudantes chineses aos ocidentais. Ambos se batiam pela pureza ideológica, ambos queriam aniquilar os vestígios da ideologia burguesa. No caso dos chineses, a aura de pequeno burguês que envolvia os estudantes, alguns de origem mais rica, era um incômodo. Dificultava a carreira, alijava-os das regalias reservadas ao Partido Comunista. Precisavam provar algo, desvencilhar-se do passado.
Durante o Grande Salto, na década anterior, cerca de 200 milhões de pessoas foram mobilizadas. Muitos foram estimulados a fazer poesia e quebrou-se a idéia de que esta forma de arte era privativa das elites. Jonathan D. Spence acha que ali se aproximou do sonho de Marx, com todos os seres humanos desenvolvendo seus talentos latentes.
A Revolução Cultural nasceu também das críticas a historiadores, como Wung Han, que teriam interpretado de forma burguesa a história do país, sobretudo no período da dinastia Ming.
Quando os guardas vermelhos ganharam as ruas já tinham como tarefa destruir os quatro velhos elementos da sociedade chinesa _velhos costumes, velhos hábitos, velha cultura e velho pensamento.
Os chineses sempre gostaram de números antes de seus projetos políticos. Às vezes são quatro elementos, três virtudes, enfim tudo isso acabou também repercutindo na esquerda ocidental, que, de vez em quando, colocava números em suas propostas. Ficava mais parecido com os chineses e era uma homenagem inconsciente à razão instrumental.
O questionamento de intelectuais e instituições no movimento de 68 era uma réplica ocidental da revolução chinesa. Sartre aderiu ao movimento, aproximou-se do maoísmo e vendeu o jornal “A Causa do Povo” na rua. Outros tiveram menos sorte.
É o caso de Theodor Adorno, um dos líderes da Escola de Frankfurt. Os estudantes invadiram a universidade que dirigia e ele chamou a polícia. Rudiger Safransky, autor de uma biografia de Heidegger, dá a entender que Adorno morreu logo em seguida, chocado com a evolução dos acontecimentos.
Mas talvez a repercussão mais profunda da Revolução Cultural no Ocidente foi a guinada de muitos intelectuais que resolveram reeducar-se pelo trabalho manual, abandonando suas tarefas e empregando-se em fábricas. Alguns relatos desse período sobreviveram. A idéia de mergulhar no trabalho manual e compartilhar o destino das massas exerceu um grande fascínio e representava, na verdade, uma opção que conferia status entre a esquerda.
As raízes antiintelectuais da Revolução Cultural não podem, no entanto, serem apontadas como causa única do antiintelectualismo, uma vez que a Revolução Cubana também desempenhou seu papel, glorificando a ação e, de uma certa mneira, ironizando esforços teóricos.
Logo após o Grande Salto, o próprio Mao, ao comentar seus erros, revelou em discursos em Lushan como, às vezes, confundia solidariedade com as massas com uma escolha pela vulgaridade.
Disse ele para uma platéia de camponeses arrasados pela crise econômica: “O caos causado foi em grande escala e assumo a responsabilidade. Camaradas, vocês têm de analisar suas próprias responsabilidades. Se têm de cagar, caguem! Se têm de peidar, peidem! Vocês vão se sentir muito melhor por isso.”
O livro do médico de Mao, Li Zhisui, informa que mais ou menos nessa época o grande timoneiro só dormia com uma dose cavalar de calmantes. O sonho de purificar ideologicamente a China foi para o espaço. Sobrou para a extrema esquerda que pagou alto pela aventura e mais tarde foi estigmatizada como a Camarilha dos Quatro. De novo um número, mostrando que a Revolução Chinesa ainda espera um intérprete versado em numerologia.


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