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Era uma vez um guardinha vermelho
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Quando a Revolução Cultural foi detonada, em 66, estava
chegando à Europa para uma temporada de seis meses. A cobertura
da mídia não deixava dúvida de que estávamos
diante de um fato histórico de proporções gigantescas.
Milhões de guardas vermelhos empunhando um livro também
vermelho do presidente Mao sacudiam as estruturas culturais do país,
queimavam prédios, humilhavam escritores. Parecia o fim de um mundo.
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Trabalhadas
pelo americano Andy Warhol, imagens de Mao se tornam ícones
da pop art
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Dois anos depois, em 68, o movimento estudantil sacudia o Ocidente. Dois
anos de diferença, milhares de quilômetros de distância
não atenuaram o fascínio que o radicalismo chinês
exerceu sobre a juventude. O fascínio não se limitou ao
campo estético, como por exemplo no filme A Chinesa,
de Jean-Luc Godard.
Havia algo no fundo do coração, ligando os estudantes chineses
aos ocidentais. Ambos se batiam pela pureza ideológica, ambos queriam
aniquilar os vestígios da ideologia burguesa. No caso dos chineses,
a aura de pequeno burguês que envolvia os estudantes, alguns de
origem mais rica, era um incômodo. Dificultava a carreira, alijava-os
das regalias reservadas ao Partido Comunista. Precisavam provar algo,
desvencilhar-se do passado.
Durante o Grande Salto, na década anterior, cerca de 200 milhões
de pessoas foram mobilizadas. Muitos foram estimulados a fazer poesia
e quebrou-se a idéia de que esta forma de arte era privativa das
elites. Jonathan D. Spence acha que ali se aproximou do sonho de Marx,
com todos os seres humanos desenvolvendo seus talentos latentes.
A Revolução Cultural nasceu também das críticas
a historiadores, como Wung Han, que teriam interpretado de forma burguesa
a história do país, sobretudo no período da dinastia
Ming.
Quando os guardas vermelhos ganharam as ruas já tinham como tarefa
destruir os quatro velhos elementos da sociedade chinesa _velhos costumes,
velhos hábitos, velha cultura e velho pensamento.
Os chineses sempre gostaram de números antes de seus projetos políticos.
Às vezes são quatro elementos, três virtudes, enfim
tudo isso acabou também repercutindo na esquerda ocidental, que,
de vez em quando, colocava números em suas propostas. Ficava mais
parecido com os chineses e era uma homenagem inconsciente à razão
instrumental.
O questionamento de intelectuais e instituições no movimento
de 68 era uma réplica ocidental da revolução chinesa.
Sartre aderiu ao movimento, aproximou-se do maoísmo e vendeu o
jornal A Causa do Povo na rua. Outros tiveram menos sorte.
É o caso de Theodor Adorno, um dos líderes da Escola de
Frankfurt. Os estudantes invadiram a universidade que dirigia e ele chamou
a polícia. Rudiger Safransky, autor de uma biografia de Heidegger,
dá a entender que Adorno morreu logo em seguida, chocado com a
evolução dos acontecimentos.
Mas talvez a repercussão mais profunda da Revolução
Cultural no Ocidente foi a guinada de muitos intelectuais que resolveram
reeducar-se pelo trabalho manual, abandonando suas tarefas e empregando-se
em fábricas. Alguns relatos desse período sobreviveram.
A idéia de mergulhar no trabalho manual e compartilhar o destino
das massas exerceu um grande fascínio e representava, na verdade,
uma opção que conferia status entre a esquerda.
As raízes antiintelectuais da Revolução Cultural
não podem, no entanto, serem apontadas como causa única
do antiintelectualismo, uma vez que a Revolução Cubana também
desempenhou seu papel, glorificando a ação e, de uma certa
mneira, ironizando esforços teóricos.
Logo após o Grande Salto, o próprio Mao, ao comentar seus
erros, revelou em discursos em Lushan como, às vezes, confundia
solidariedade com as massas com uma escolha pela vulgaridade.
Disse ele para uma platéia de camponeses arrasados pela crise econômica:
O caos causado foi em grande escala e assumo a responsabilidade.
Camaradas, vocês têm de analisar suas próprias responsabilidades.
Se têm de cagar, caguem! Se têm de peidar, peidem! Vocês
vão se sentir muito melhor por isso.
O livro do médico de Mao, Li Zhisui, informa que mais ou menos
nessa época o grande timoneiro só dormia com uma dose cavalar
de calmantes. O sonho de purificar ideologicamente a China foi para o
espaço. Sobrou para a extrema esquerda que pagou alto pela aventura
e mais tarde foi estigmatizada como a Camarilha dos Quatro. De novo um
número, mostrando que a Revolução Chinesa ainda espera
um intérprete versado em numerologia.
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