São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 1999




Um clássico do marketing político

ALON FEUERWERKER
especial para a Folha

Reler vinte e tantos anos depois o livro “Citações do Presidente Mao Tse-tung” foi como fazer um percurso com a partida na política e a chegada na história.
Três décadas atrás, o “Livro Vermelho” (sua capa era vermelha) era o símbolo mais universal do sangrento extremismo político, econômico e intelectual que, liderado por Mao, havia tomado conta da China Socialista sob o rótulo de Grande Revolução Cultural Proletária. A Revolução Cultural, como ficou conhecida, foi uma revolução na revolução, o último estertor de comunismo puro chinês antes da morte do próprio Mao em 1976 e da virada do país para a economia de mercado, sob o comando de Deng Xiaoping.

Associated Press
Cópias do "Livro Vermelho" em antiquário de Xangai


Se o leitor não conhece a história, vale pelo menos ver “O Último Imperador”, do cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Ou vale ler as “Citações”. Na Internet, há uma edição portuguesa (Minerva) no catálogo da Livraria Cultura (www.livcultura.com.br). Sai por R$ 12,32.
Foi lida para este artigo a versão em espanhol: “Citas del Presidente Mao Tse-tung” (1966, Ediciones en Lenguas Estranjeras, Pekin, 333 págs.). Em 33 capítulos, desfilam trechos de “Sobre a Prática”, “Sobre a Contradição”, “Sobre a Guerra Prolongada”, “Sobre o Tratamento Correto das Contradições no Seio do Povo” etc.
É quase um manual de auto-ajuda para revolucionários. Reúne citações retiradas da extensa obra política de Mao, líder da Revolução Chinesa e construtor, com Deng Xiaoping, da China moderna. Quando Mao entrou em cena, nos anos 20, a China vinha de (a ordem é cronológica):
1. Ser subjugada e retalhada de maneira humilhante pelas potências ocidentais no século 19.
2. Uma revolução democrática, conduzida pelos nacionalistas do Kuomintang, do líder Sun Yat-sen.
3. Uma repressão sangrenta do Kuomintang contra levantes nas grandes cidades de seus antigos aliados comunistas.
Mao assumiu a liderança do Partido Comunista da China quando o centro de gravidade das ações do PC se deslocou da cidade para o campo. Destroçados nos grandes centros urbanos, os comunistas mergulharam no imenso, atrasado e superexplorado campesinato chinês. De lá tiraram o apoio político e as energias que os levariam ao poder em 1949, após a Longa Marcha, a resistência ao invasor japonês na Segunda Guerra Mundial e a vitória militar final sobre o Kuomintang do sucessor de Yat-sen, Chiang Kai-chek, que viria a fundar a “China Nacionalista” na ilha de Formosa.
Essa sequência de fatos explica por que os aspectos políticos, históricos e militares estão tão misturados na obra de Mao, em particular no “Livro Vermelho”.
Fica mais fácil compreender por que “O poder nasce do fuzil” e “O imperialismo e os reacionários são tigres de papel”, duas passagens do livro, acabaram famosas. Era a época da certeza da vitória final do socialismo sobre o capitalismo e o imperialismo, e da fé convicta na luta armada como instrumento supremo de transformação da sociedade.
Hoje, isso tudo é história. Menos pelo tempo decorrido, mais pela completa e absoluta hegemonia do capitalismo no mundo após o desmanche da União Soviética, no início desta década.
Mao e sua obra devem ser analisados com distanciamento, longe das paixões da luta política. Numa análise fria, o “Livro Vermelho” pode ser considerado um clássico do marketing político. Antigamente o nome era outro: agitação e propaganda.
O desafio de Mao era interconectar e fazer convergir para objetivos políticos comuns e desejáveis (para ele) uma população de mais de meio bilhão de pessoas (na maioria recém-saídas de um sistema com fortes traços feudais), um exército poderoso e um partido vindo de liderar uma revolução vitoriosa.
A tarefa era hercúlea. Processos históricos marcados pela incorporação de grandes massas ao mercado e à política criam a necessidade de oferecer aos milhões de novos cidadãos também o “pão do espírito”, inclusive explicações simples e esquemáticas sobre realidades complexas e intrincadas, cujas condicionantes últimas estão fora do alcance do homem comum, empenhado na própria sobrevivência.
Mao Tse-tung não foi um teórico da ciência política. Foi um líder de sucesso. Chegou ao poder e nele ficou até morrer em setembro de 1976. A leitura do livro, ao expor o modo como ele via sua relação com as massas, ajuda a entender o porquê dessa longevidade.
Diferentemente dos comunistas russos, Mao relativizava a autoridade do partido sobre o povo e sobre a sociedade. Os críticos leninistas de Mao cansaram-se de acusá-lo de subestimar a importância do partido de vanguarda, de fazer uma política própria e personalista junto ao povo chinês.
Mas o fato é que Mao Tse-tung sempre pôde contar com o povo para isolar e abater os adversários políticos, que só conseguiram erguer a cabeça após sua morte.

Alon Feuerwerker, 44, é diretor de Novos Produtos do UOL. Foi editor de Economia, Opinião e Esportes e secretário de Redação da Folha


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