São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1999




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AFRO
‘Um dia, Xangô virá, não sei se já, mas virá’

da Reportagem Local

Mesmo que o cinco vire sete, como diz um velho samba de Ataulfo Alves, o percussionista Marcos Antonio da Silva não abandonará a certeza de que, um dia, Xangô vai aparecer. O músico de 21 anos, conhecido por Axé, espera o orixá “feito menino que não vê a hora de conhecer rapariga”.
“Xangô virá. Não sei se já ou depois, mas virá. Eu sinto.” Quando vier, Axé sairá de si. “Vou me entregar. Xangô descerá no terreiro, tomará meu corpo e me guiará. Serei o que Xangô quiser.”
Pernambucano de Olinda, o rapaz mora em São Paulo há dez meses. Toca na banda do cantor Otto, também pernambucano.
“Respiro candomblé desde que nasci.” Diz candomblé, mas poderia dizer umbanda ou catimbó. “Não consigo separar. Os mistérios se misturam.” Conta que sua avó, benzedeira e mãe-de-santo, descendente de escravos, costumava convocar os netos para as cerimônias religiosas. “Numa noite, a vóinha chamava: ô, povo, hoje tem candomblé. Na outra, trocava: corre, tá na hora da macumba. Então, confundi tudo.”
Ainda que não diferencie as tradições, foi da umbanda e do catimbó que Axé herdou o hábito de consultar o espírito dos mortos. Do candomblé, extraiu o apelido (sinônimo de força) e a crença nos deuses africanos (os orixás).
Com duas mães-de-santo e um pai-de-santo, aprendeu que é filho de Xangô. “Os búzios revelaram para os três. Ninguém se atreveu a contestar.”
Daí a espera ansiosa pelo orixá, um dos mais poderosos do candomblé, senhor dos trovões e da justiça. “Se sou filho de Xangô, um dia vou incorporá-lo. É a lei. Ele ainda não veio porque preciso amadurecer. Daqui a uns dois anos, quem sabe...”
Depois que receber a divindade pela primeira vez (“Xangô dança com o machado na mão, dá pinote, é meio acrobata, exige que o corpo do filho esteja bem forte”), Axé assumirá uma série de responsabilidades. “Vou cuidar das coisas do santo. Vou agradá-lo com oferendas: galo, carneiro, pombo, uísque, vodca.”
Em certas ocasiões, terá de permanecer sete dias sem sexo, “de resguardo”. “Vale a pena. Eu ajudo o orixá, e o orixá me ajuda.”
Os mortos também podem ajudar Axé. “Os mestres, aquelas pessoas sábias que morreram, dão conselhos e protegem. Os espíritos deles estão sempre por aqui. Agora mesmo, enquanto converso, as almas me observam. Param e ouvem, sossegadinhas.”
São espíritos bons, “que afugentam os espíritos zombeteiros, dos mortos que só pensam em destruir. Por causa das almas iluminadas que me rodeiam, as ruins guardam distância, não se aproximam. Sabem que meus mestres vão despachá-las num piscar”.
Entre os muitos “espíritos de luz” que o dirigem, o músico destaca dois: o Pedra Preta e a Maria do Bagaço. “Nenhum deles desce em mim, porque apenas os médiuns incorporam os mestres.”
O “seu Pedra” baixa na mãe de Axé. Trata-se de um marinheiro que morreu em um naufrágio e que recebeu de Nossa Senhora a tarefa de transmitir o bem.
“Mãinha vai para o terreiro, se concentra, o seu Pedra chega. Mãinha sai do corpo e some. O mestre fica no lugar. Fala grosso pela boca dela. Pede roupas. As auxiliares despem mãinha e a vestem com os trajes do seu Pedra _calça branca, camisa azul, lenço vermelho, bengalinha e chapéu. Começa, então, a bebedeira. Seu Pedra entorna vinho tinto a noite toda. E fuma charuto. É gozado, porque mãinha não bebe e fuma somente cigarro. No fim da sessão, seu Pedra está bêbado, mas quando abandona mãinha, e mãinha volta do transe, volta boa que é uma beleza. Volta sóbria.”
Axé diz que Pedra Preta já o curou de um abscesso na boca. “Ele me receitou chá e banho de ervas. Sarei.” Para agradecer, assistiu a sete missas “em memória das almas”. “Missa de padre, claro. Filho de santo não deixa de ser católico também.”
Mais espalhafatosa que Pedra Preta, Maria do Bagaço desce em Lucinha, amiga do percussionista. “É o espírito de uma mulher instigada, mal vê homem e já atraca, sai beijando, dá abraço, uma putaria, mas putaria sadia. Adoro a Maria do Bagaço, largadinha, atirada no mundo. Bonita que só a peste. Usa vestidão preto e vermelho, trancelim, pulseira, muito perfume. Músicos como eu, que vivem do palco, precisam desfrutar de espíritos assim.” (AA)

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