Inéditos expõem buscas literárias de Julio Cortázar
"Muito do que escrevi se classifica sob o signo da excentricidade, porque nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever", afirma Julio Cortázar no texto "Do Sentimento de Não Estar Totalmente".
Neste pequeno ensaio confessional, o escritor argentino (1914-1984) explica a "constante lúdica" a que permaneceu vinculado, e que o permitiu ver o mundo ao mesmo tempo do modo ingênuo de uma criança e da maneira irônica e oblíqua de um poeta.
"Cortázar enxerga o seu redor como uma realidade degradada, mas que pode ser observada a partir de frestas criadas pela literatura. Daí o "não-estar totalmente".
A busca por esse olhar, tanto por meio de temas como de procedimentos no uso da língua, é o grande tema de sua obra", diz Davi Arrigucci, professor aposentado de teoria da literatura da USP.
O autor de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras), em que analisa o trabalho do argentino, considera que, hoje, avalia-se mal sua herança, ou pelo fato de ele ter sido demasiado radical, ou pela cristalização de uma equivocada definição de seu legado como um esforço de vanguarda datado.
A leitura de "A Volta ao Dia em 80 Mundos" (1967) e "Último Round" (1969), lançados agora pela editora Civilização Brasileira, ajuda a jogar luz às diferentes facetas do autor, pois reúnem ensaios, contos, poesias e jogos de experimentação, cheios de ironia e crítica.
No ensaio mencionado no começo deste texto, por exemplo, Cortázar expõe o sentimento de "estranhamento" que o acompanhava. "Foi essa força que o fez construir pontes, galerias e passagens em que se fazia possível escapar para um outro espaço e tempo e depois voltar", diz Arrigucci.
Ambos os livros são inéditos e chegam em edições que recuperam o modo original como o autor os concebeu, com imagens que compõem o sentido dos textos. Trata-se de desenhos, obras de arte, fotos de autores, músicos e boxeadores.
Reminiscências
Nascido na Bélgica, Cortázar passou a infância em Banfield, próximo a Buenos Aires. Frágil e freqüentemente doente, não podia sair muito e passava dias em casa lendo. Dessa época, ficou a paixão por Julio Verne -reverenciado no título que brinca com "A Volta ao Mundo em 80 Dias", do autor francês.
Nas duas obras que agora saem, reminiscências dessas leituras mesclam-se com o que passou a ler e vivenciar em Paris, onde se radicou a partir dos anos 50.
O surrealismo passa a ser uma de suas principais referências então, especificamente a figura do poeta e dramaturgo Antonin Artaud (1896-1948).
Para Arrigucci, o fato de Cortázar ter se ancorado mais aos acontecimentos de seu presente, envolvendo-se com os dramas da política latino-americana, ao contrário de Jorge Luis Borges, considerado mais universal e atemporal, não diminui a força de seu legado.
"O fato de afirmar que a literatura tem o papel de olhar de fora, de observar a partir da periferia é algo que permaneceu na produção latino-americana que o sucedeu. E isso não é importante apenas no sentido literário, mas tem um desdobramento político, ao propor uma reflexão sobre o papel da América Latina no planeta", diz.
Música
Entre as muitos temas de obsessão pessoal do escritor que estão nos dois livros, figura o jazz. Este o agradava especialmente por oferecer diversas maneiras de desenvolver uma idéia.
"As idéias de improvisação e de experimentação o fascinavam e isso era muito claro no jazz, em que se fazem muitas tentativas e só uma é registrada num disco, as outras ficam soltas por aí", afirma o estudioso. Outro gênero de que gostava era o tango.
O tradutor Ari Roitman destaca o uso inovador que Cortázar faz do "lunfardo", gíria usada nas letras dos tangos argentinos. Ao contrário de Borges, Cortázar admirava Carlos Gardel.
"Quando Gardel canta um tango, seu estilo expressa o estilo do povo que o amou. A dor ou a cólera diante do abandono da mulher são dor e cólera concretas", disse, em texto que saiu originalmente na revista "Sur", de Buenos Aires, em 1953.
Essa maneira de interpretar o tango como um sistema de comunicação que pode inventar algo verdadeiro corresponde à busca que ele mesmo promovia. "Cortázar queria levar a linguagem a seu extremo, queria que ela fosse não só capaz de nomear, mas também de criar algo", resume Arrigucci.
A Volta ao Dia em 80 Mundos e Último Round
Autor: Julio Cortázar
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht
Lançamento: Civilização Brasileira
Preço: R$ 30 cada tomo ("Último Round", tomo 1, 296 págs., tomo 2, 288 págs.; "A Volta...", tomo 1, 184 págs., tomo 2, 184 págs.)
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