ILUSTRADA 50 ANOS: 2006 - O império da Companhia das Letras
Há 20 anos, Luiz Schwarcz deixou o cargo de diretor da festejada editora Brasiliense, foi para sua casa no Jardim Europa, em São Paulo, colocou no toca-discos um LP dos Rolling Stones e começou a dançar, enquanto pensava no que faria da vida. Àquela altura, sabia que a idéia de se tornar um professor universitário encolhera diante da perspectiva de continuar se dedicando à atividade editorial.
Ao som de Mick Jagger, decidiu-se: iria fazer sua própria editora. Com a venda de um apartamento e uma ajuda da família reuniu os US$ 140 mil que se transformariam na Companhia das Letras. Um "fetichista" do livro, como ele mesmo se define, Schwarcz imprimiu à cena editorial brasileira um padrão que antes só se via em países mais avançados e letrados. E começou com pé direito, com um surpreendente best-seller: "Rumo à Estação Finlândia", de Edmund Wilson. Na entrevista que se segue, Schwarcz, 50, fala sobre a época em que a Companhia das Letras foi criada e conta como a editora assumiu papel de liderança no mercado brasileiro.
Julia Moraes/Folha Imagem |
O autor e editor da Companhia das Letras Luiz Schwarcz |
FOLHA - Como surgiu a idéia de criar a Companhia das Letras?
LUIZ SCHWARCZ - No dia em que eu saí da editora Brasiliense, estava em casa, botei um som alto dos Rolling Stones, o disco era "Dirty Work" (1986). Fiquei dançando no jardim e foi então que tive a idéia.
FOLHA - A saída da Brasiliense foi litigiosa?
SCHWARCZ - Foi sem litígio. Eu era diretor editorial e tinha participação nos lucros. Decidi que queria sair de lá, porque achava que, de certa maneira, estava começando a disputar a Brasiliense com o Caio [Graco Prado, então dono da editora]. A gente tinha visões diferentes. O Caio queria se manter fiel ao leitor mais jovem, da faixa etária que a Brasiliense descobriu e que, realmente, mudou o mercado. Mas eu queria editar para pessoas que estavam crescendo e amadurecendo.
FOLHA - A coleção "Primeiros Passos" foi um grande sucesso. Ela foi criada por você?
SCHWARCZ - A idéia foi do Caio. Ele queria fazer a coleção a partir de uma que já existia na Espanha e se chamava Biblioteca de Iniciación Política. Meu primeiro trabalho editorial na Brasiliense deveria ter sido adaptar aquela coleção ao Brasil. O Caio foi viajar, e eu tomei uma decisão ousada. Cancelei o pagamento da coleção no Banco Central, a remessa dos royalties, tudo. E fiz um relatório para ele dizendo que aquela coleção tinha que ser feita no Brasil, que não deveríamos fazer traduções. Surgiu, então, a "Primeiros Passos". Eu não criei, eu simplesmente sugeri que não fossem livros traduzidos.
FOLHA - Como você foi parar na Brasiliense? Já pretendia ser editor?
SCHWARCZ - Naquela época, eu achava que seria um futuro virtual professor da USP ou da FGV. Eu não achava que seria editor. Achei que poderia ser, talvez, um livreiro. Formei-me em administração, na FGV, mas fiz uma formação paralela em ciências sociais, porque eu ficava lendo na biblioteca. Fui trabalhar na Brasiliense para obter um estágio.
FOLHA - Qual foi seu investimento inicial na Companhia das Letras?
SCHWARCZ - Eu mudei para esta casa, que recebi de presente do meu avô, e vendi o apartamento onde morava. Fiquei com US$ 100 mil, que se transformaram no começo da Companhia. Era pouco, por isso a gráfica dos meus pais entrou com US$ 40 mil. Hoje, para pensar em começar uma editora, US$ 140 mil é muito pouco.
FOLHA - "Rumo à Estação Finlândia" foi o sucesso mais inesperado da história das editoras do Brasil?
SCHWARCZ - Acho que foi quase universal, porque as pessoas não acreditam que "Rumo à Estação Finlândia" pudesse ter se transformado num best-seller.
FOLHA - O que explica isso?
SCHWARCZ - Há alguns fatores curiosos, que têm a ver com a conjuntura da época. Não acho que a Companhia das Letras em si tenha trazido qualquer tipo de novidade, mas a idéia de radicalidade do projeto teve uma repercussão muito rápida. Quando a editora tinha dois, três meses de vida, sem publicar nenhum título, a Ilustrada fez uma matéria comigo e com o Augusto Nunes, que ia lançar uma revista na Abril, e o título era assim: "São Paulo ganhará nova editora e nova revista". A revista nunca aconteceu, mas a matéria dizia que eu pensava numa editora de qualidade radical, tanto do ponto de vista gráfico como editorial. A partir daí, a Companhia começou a freqüentar a mídia, sem iniciativa nenhuma nossa.
FOLHA - Havia também uma conjuntura geracional, o Brasil mudando e outros fenômenos análogos aconteciam, não?
SCHWARCZ - É, nessa época havia muitas coisas "bombando" em São Paulo e no Brasil... Havia um ambiente cultural e político novo, debates, Mostra de Cinema, festival de jazz, polêmicas sobre patrulhas ideológicas, uma conjuntura que trabalhava a favor do projeto. E a favor de "Rumo à Estação Finlândia", especificamente.
FOLHA - Como é que você contratou esse livro?
SCHWARCZ - A idéia foi do Paulo Sérgio Pinheiro. Ele havia sugerido para a Brasiliense, mas o Caio não quis publicar.
FOLHA - Foi o primeiro livro?
SCHWARCZ - Saíram quatro livros, mas o "Rumo" virou simbolicamente o primeiro. Era um momento em que os intelectuais estavam indo para a política, havia essa questão da linguagem dos intelectuais... Isso se confunde um pouco com a linha da Companhia. Queríamos fazer uma editora de alta qualidade, mas acessível. E esse livro era um símbolo para alguns jornalistas -como o Paulo Francis- do que nossos intelectuais não conseguiam ser em termos de linguagem...
FOLHA - Quais editoras eram referência para você naquele momento?
SCHWARCZ - A Nova Fronteira já tinha mostrado que livros de qualidade podiam vender. Marguerite Yourcenar havia sido capa da Veja. Era uma editora importante, na qual nos inspiramos muito. Havia o modelo da Brasiliense e o da Record, que inovava do ponto de vista das técnicas de marketing. O editor não era mais visto como um missionário ou um representante de uma missão de esquerda... A mistura do comércio com a política estava ficando um pouco mais clara. E havia a Jorge Zahar como exemplo da editora de catálogo.
FOLHA - Quando a Companhia se tornou importante no mercado? Quando o Fernando Moreira Salles entrou para a sociedade?
SCHWARCZ - A entrada do Fernando [possui cerca de 30% das ações] aconteceu três anos depois de a editora existir. Nós não queríamos ser nanicos ou alternativos, mas também nunca pensei que seria uma editora grande. Acho que a partir do segundo ano ela pode ser considerada importante.
FOLHA - Mas ela foi além. Qual é o limite?
SCHWARCZ - Eu acho que já passou do limite. É uma editora que tem 101 funcionários e publica 200 títulos por ano.
FOLHA - Como você trouxe Rubem Fonseca para o catálogo da editora?
SCHWARCZ - Eu não queria sair pegando autores de outras editoras. Tinha que aproveitar uma oportunidade que surgisse com algum autor insatisfeito. E ela surgiu com o Rubem Fonseca. O namoro começou num jantar em torno da agente espanhola Carmen Balcells. Sentei do lado dele e aí começaram a perguntar: "O que você vai lançar"? Falei: "Vou lançar um escritor que ninguém conhece, chamado Don DeLillo". O Rubem falou: "Como? Você vai lançar Don DeLillo? Eu sou o único no Brasil que leu Don DeLillo". Aí eu disse que ia lançar os contos de John Cheever -que era ídolo dele. Ficou uma conversa, assim... uma paixão à primeira vista. Tudo que eu ia publicar, ele já tinha lido. Quando os livros saíram, mandei para ele e ele escreveu comentando a tipologia. Era também um fetichista do livro e começamos a ter um relacionamento epistolar.
FOLHA - Qual era a editora dele?
SCHWARCZ - Ele era publicado pela Francisco Alves, mas havia rumores de que não estava satisfeito. Um jornalista amigo me escreveu, dizendo que o novo romance do Rubem ia sair pela Francisco Alves. E eu estava com aquela ilusão de que ele ia se interessar pela Companhia das Letras. Aí eu escrevi uma carta para ele: "Pô, perdi a briga, mas, enfim, fique sabendo que você nunca vai encontrar um editor que goste mais da sua obra..." Então, ele me escreveu: quem falou que o livro vai sair pela Francisco Alves? Venha para o Rio conversar. Cheguei na casa dele e ele falou: "Putz, deu uma merda aqui e o livro não ficou impresso ainda. Minha impressora quebrou, eu tenho que ir para a casa de um amigo imprimir, você fica aqui esperando. Quando ele voltou, me entregou os papéis: tá aqui, toma, para você publicar". Era "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos". "Legal", eu disse, mas nós nem conversamos sobre as condições, nada. Ele disse que queria publicar comigo e que fizesse o que fosse mais justo. Quando eu estava na porta, ele disse que não havíamos falado sobre os outros livros. Eu disse: "Como assim?" Ele falou: "Vou passar tudo para a sua editora". Aí fiquei meio sem palavras, dei um abraço nele, entrei no táxi e fui dando socos no ar... Acho que o motorista pensou que eu era louco.
FOLHA - Você fez um acordo de pagá-lo para escrever?
SCHWARCZ - Não. Quando o livro fica pronto, a gente calcula a tiragem e eu pago a tiragem integral para ele. Depois, são royalties. Foi o primeiro livro -ou um dos primeiros- que teve uma campanha de anúncios, feita pela W/Brasil, do Washington Olivetto. O Rubem também trouxe outros autores, como a Ana Miranda, que fez "Boca do Inferno", um "case" de sucesso. Hoje é mais difícil lançar um escritor como a Ana Miranda ou a Patrícia Melo, que fizeram sucesso imediato.
FOLHA - Por quê?
SCHWARCZ - A situação do mercado é diferente. Existe uma crise de superprodução de livro que é mundial. Eu acho também que o jornalismo se profissionalizou, melhorou, mas não necessariamente os cadernos culturais estão voltados para livros como estavam antigamente. Hoje, no mundo todo, menos livros são vendidos e os que fazem grande sucesso alcançam cifras jamais alcançadas. É um fenômeno difícil de lidar. O mercado vive nessa ilusão de mimetizar os sucessos, refabricar o "Código da Vinci", por exemplo. Esses livros não se refabricam, são fenômenos que acontecem exclusivamente por uma coisa que se estabelece entre o leitor e o escritor. "Código da Vinci" não virou "Código da Vinci" por uma jogada...
FOLHA - Quem é seu principal concorrente, sua pedra no sapato?
SCHWARCZ - Pedra no sapato eu não tenho, mas a Companhia tem muito mais concorrência do que no começo, quando ela surgiu com esse modelo que não considero original na essência, mas original na miscelânea. Hoje, o número de editoras que disputam os títulos da nossa área é muito maior. Podemos perder um livro para uma editora pequena. Até porque um escritor pode falar que não quer a Companhia pelo fato de ela ser uma editora grande, na qual ele concorrerá com escritores famosos, midiáticos.
FOLHA - Qual o maior best-seller?
SCHWARCZ - "O Mundo de Sofia" (de Jostein Gaarder), que deve estar chegando quase a um milhão de livros vendidos.
FOLHA - Qual foi a maior crise?
SCHWARCZ - O maior susto foi Collor. De repente, 80% dos bens da empresa ficaram bloqueados. A "História da Vida Privada" estava na gráfica para rodar. Então disse para o dono da gráfica: "Não vou ter dinheiro para te pagar, só quando vender. Você também está parado. Roda o livro e, na medida em que eu for vendendo, vou te pagando". O livro, lançado dois meses após o Plano Collor, foi para o topo da lista dos mais vendidos. O Brasil traz surpresas, não? A Companhia, graças a Deus, nunca teve crise estrutural.
FOLHA - Você está escrevendo um romance. Como está?
SCHWARCZ - Espero continuar, que eu consiga escrever. Até já achei um título. Vi num museu em Lucerna uma frase do Leon Battista Alberti [artista renascentista, (1404-1472)], que dizia: "Não direi nada além do que eu já não disse".
Será uma história baseada em algo que aconteceu comigo. Tomei um vôo uma vez em que havia um passageiro com mal de Alzheimer. E a partir desse episódio comecei a pensar num romance, cujo título seria: "Nada Além do que Já Não Disse".
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade