Leia íntegra da entrevista do curador da exposição de Andy Warhol em SP
A mostra "Andy Warhol, Mr. America" foi concebida pelo curador canadense Philip Larratt-Smith como "nova forma de se observar Warhol", através da cultura imperialista norte-americana. Trabalhando como curador "free-lance" em Nova York, ele concedeu entrevista à Folha por e-mail, na semana passada, antes de desembarcar no Brasil, domingo passado.
Seu próximo projeto envolve novamente o país, numa mostra sobre Louise Bourgeois e seu engajamento na psicanálise, que irá começar na Fundação Proa, de Buenos Aires, no próximo ano, e depois será vista no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
Leia a seguir a íntegra da entrevista sobre a mostra de Warhol.
Folha - A exposição explora a relação entre cultura pop e política nos EUA. Por que você escolheu esse tema para se olhar o trabalho de Warhol na América Latina?
Philip Larratt-Smith - Por várias razões. Primeiro, a exportação da cultura norte-americana pelo mundo tem sido, frequentemente, vista como inseparável da ordem mundial, na qual os EUA funcionam como o império de fato. Devido à longa história das intervenções norte-americanas na América Latina e o papel fora do comum desempenhado pelas multinacionais americanas, estas tensões são muito aparentes na região. Mas, eu não desconheço que a recepção da obra de Warhol na América Latina tem, frequentemente, adquirido a percepção da indiferença, brutalidade, intimidação e hipocrisia. Em segundo lugar, Warhol foi o primeiro artista a perceber e abordar a forma como a cultura popular e o comportamento político se entrelaçaram nos EUA. Em terceiro, Warhol encarnou e expressou várias dos pressupostos que levaram à construção do império americano: a relação entre desejo, fantasia e consumo, ou mesmo a persistência da morte por trás da essencialmente afirmativa iconografia da cultura pop dos EUA. Quarto, o fato de essa exposição ser apresentada em termos da cultura política americana é, em si, um comentário à recorrente tendência americana em se observar a América Latina por meio de lentes políticas. Finalmente, esse aspecto da obra de Warhol nunca foi explorado em tal profundidade antes e minha ambição é apresentar uma mostra na América do Sul que traz uma nova forma de se observar Warhol.
Folha - A obra de Warhol chegou a ser considerada "realismo capitalista" numa forma marxista de se acusar o sistema capitalista. Você concorda com essa tese?
Larratt-Smith - O rótulo "capitalismo realista" foi criado na então Alemanha Ocidental, e ele foi usado na primeira exibição da obra de Gerhard Richter e Sigmar Polke, e apenas depois se aplicou ao trabalho de Warhol. Eu acredito que ele é exato, mas uma descrição insuficiente do que alcançaram as melhores pinturas de Warhol, pois ele esconde as tensões centrais na estrutura desses trabalhos, que são compostos por uma grande riqueza e complexidade. Ele também serviu às necessidades ideológicas da crítica ansiosa em estabelecer um tipo de falsa equivalência ou simetria entre o capitalismo ocidental e o comunismo do leste; vários desses mesmos críticos eram marxistas que se não eram filiados ao partido comunista estavam engajados em suas ideias. Certamente Warhol nunca deixou de estar atento às vítimas do sistema capitalista, como os afroamericanos sendo atacados pela polícia com cachorros, ou às duas idosas que comeram atum estragado, ou mesmo anônimos suicidas e vítimas de acidente de automóvel. Pense apenas nos retratos de Jackie Kennedy antes e depois do assassinato de seu marido.
Folha - Que componente político na obra de Warhol é central nessa mostra?
Larratt-Smith - No fim de sua vida, Warhol começou a usar camuflagem como um estratagema em sua obra (em "Mr. America" há um maravilho autorretrato camuflado em vermelho, branco e azul, as cores da bandeira dos EUA). Isso mostra não apenas a peculiar e extrema forma de autopromoção e exibicionismo de Warhol por um lado e a radical reticência por outro, mas também a divisão entre ilusão e realidade que caracteriza o projeto do império americano. A camuflagem sugere que as aparências são enganosas, e que existem agendas escondidas. Se os EUA são um império, é um império que pretende não se apresentar com tal. Em meu ensaio no catálogo da mostra, argumento que Warhol era um artista que se travestia a partir do trabalho de outros artistas e da cultura popular e, ao fazer isso, produzia romance e surpreendentes combinações, que alcançam longa duração, assim como o império americano é um império travestido, que tem a pretensão de ser o que não é: um supervisor benevolente do sistema financeiro global, por exemplo, ou o zeloso policial do mundo. Um fora do sistema por sua classe social, orientação sexual e aparência, Warhol desejou, com intensidade patológica, viver o sonho americano e assimilar ele mesmo a complexidade dos mitos e narrativas da América.
Folha - O sarcasmo do Warhol em relação ao mercado de arte foi uma forma de revelar seus mecanismos perversos ou ele realmente só queria saber de dinheiro?
Larratt-Smith - Sempre em Warhol o que parece ser uma questão "ou isso ou aquilo" se torna uma proposição "e". Warhol adorava dinheiro e não via porque um artista não podia ganhar tanto dinheiro quanto um astro de rock, um estilista ou uma atriz de Hollywood. Os retratos encomendados dos anos 1970 certamente parecem mais uma forma cínica de se fazer muito dinheiro e, em minha opinião, não devem ser considerados arte. Assim, a esse respeito, ele foi um verdadeiro proletário, livre da atitude ambivalente e desconfiada da classe média a respeito dos ricos: ele simplesmente queria fazer parte da festa.
Contudo, eu creio que Warhol estava abordando o mercado de arte assim como ele abordou tudo o mais, em particular a mistificação que frequentemente esconde as bases econômicas dos cânones de gosto. Em qualquer caso, ele acreditava na onipotência do dólar como último arbitro para produção de sentido, e o que pode ser mais americano que isso?
Folha - O expressionismo abstrato foi considerado uma arma da Guerra Fria, no texto clássico e Eva Cockcroft. Você acredita que a obra de Warhol também se encaixe sob essa ótica?
Larratt-Smith - Esse é um ponto de vista legítimo, apesar de eu não estar seguro que Warhol não foi tão apropriado pelo Departamento de Estado como o foi o expressionismo abstrato. Como Tom Sokolowski, diretor de Museu Warhol, escreveu em sua introdução no catálogo, existe algo irredutivelmente americano na sensibilidade e na iconografia de Warhol, que o faz mais "local" se comparado à internacional linguagem da abstração. Assim como o mundo se tornou crescentemente americanizado no pós-guerra, foi a obra de Warhol e seu padrão de sucesso que excursionou muito, considerando-se que o expressionismo abstrato foi tido como todo uma nova proposta e não o fim do moderno europeu. Voltando a algo que eu já afirmei antes, de Hollywood à transmissão da chegada do homem à Lua, os EUA construíram uma imagem idealizada de sua própria hegemonia. Seria o sonho americano, incorporado por Warhol em sua vida e expresso em sua arte, apenas a série de imagens de um império travestido?
Folha - E qual a importância da obra de Warhol para o imaginário gay do século 20?
Larratt-Smith - Eu tendo a ver Warhol como uma das figuras-chave na liberação gay nos EUA. Em sua palheta e em seu investimento libidinal de imagens de mulheres glamorosas, seu trabalho registra uma sensibilidade muito gay e como isso é codificado pelos ícones da cultura "mainstream", ele conseguiu falar também para uma audiência massiva. O significado dúbio de seu trabalho "Os homens mais procurados", onde "procurados" significa tanto "buscados pela polícia" assim como "desejados", mostra como ele recondicionou cuidadosamente seus desejos, e como ele jogou, de forma astuta, tanto com os desejos gays como heterossexuais. Seus filmes foram inovadores em seu estilo documental ao retratar atos sexuais (novamente gays e heteros), e a forma descomplicada e naturalista de mostrar homossexuais, drag queens e prostituição masculina. Warhol também vivia fora do armário quando outros artistas ainda tinham medo de se assumir. Ele foi muito corajoso e permanece como símbolo da cultura gay.
Folha - Mesmo não tendo sido bem aceito na cena artística dos anos 1960, Rauschenberg e Jasper Johns, por exemplo, não admiravam seu trabalho, Warhol se tornou o mais reconhecido artista americano do século 20. Por que isso foi possível?
Larratt-Smith - Muitos outros artistas o viram de forma suspeita porque ele vinha do mundo da ilustração comercial e não se desculpava por isso, e ele era muito "viado", o que significa muito extrovertido e muito obviamente gay. A turma dos expressionistas abstratos o odiava, particularmente De Kooning, que uma vez o chamou de "matador do belo", em uma festa, quando se encontraram. Apesar de tudo isso, Warhol se tornou no mais importante e mais influente artista americano da história. Isso tem a ver com o amplo espectro de sua atividade: suas inovações formais na pintura e no cinema, seus experimentos na música rock, multimídia, revistas e moda, e na forma como ele se reinventou de forma constante. Warhol quebrou o sistema de produção de trabalhos com obras vanguardistas por populares e com uma audiência massiva, itens de troca mercantil por objetos com requintada excelência visual, jogadas conceituais e obras primas formais. O mundo da arte de hoje é realmente o mundo de Warhol.
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