Leia trechos da biografia de Antonio Meneses
Livro sai pela Algol Editora no final de outubro, quando ele toca na Sala São Paulo, com a Osesp.
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Meu pai tinha 27 anos quando eu nasci. Era uma pessoa muito inteligente, muito capaz, lia muito. Quando eu estive no final de 2009 em Recife, descobri que ele era muito ativo politicamente --e essa teria sido uma das razões para que a gente fosse para o Rio. Ele se envolveu com o Partido Comunista de Recife, foi parar na prisão --era 58, mas estamos falando de Recife, ele era de certa forma ligado ao Arraes. Eu não sei exatamente o que ele fez, ou que função tinha, mas de qualquer maneira ele foi preso. Alguém me contou agora que ele era o único trompista que havia --bom-- em Recife. Já era musico profissional, casado ou prestes a casar... Pois havia um concerto da Sinfônica de Recife naquele dia em que ele foi preso --e foram ao Prefeito para tirar meu pai da prisão! Quando chegaram lá para soltar, ele falou: "Não! Vocês não me prenderam? Agora vou ficar aqui!" Acabou que finalmente convenceram o meu pai, ele saiu e foi fazer o concerto.
Naquele momento, com a OSB, a minha vida tinha uma rotina pesada [aos 14 anos, Antonio fez prova e foi contratado pela Orquestra Sinfônica Brasileira]. Mas eu era músico profissional e já ganhava o meu dinheiro --e era muito, comparado com o que os meus colegas de escola tinham. Quando uma professora começou a falar sobre profissões, o que cada um gostaria de ser, eu disse: "eu quero ser músico". E ela: "Mas musico no Brasil é profissão pra morrer de fome". "Pois eu acho que na minha profissão hoje em dia eu já ganho mais do que a senhora". Foi um uóóóóó... Já haviam descoberto que eu era músico, pelo jornal, pela TV, muitos colegas de escola começaram a ir aos concertos. Mas eu tinha uma vida muito diferente da vida dos outros alunos. Tinha ensaio a manhã toda, ia para a escola e quando eu chegava em casa, fazia os deveres e ainda estudava três horas por dia de violoncelo.
...o pior lugar em que eu morei na minha vida, que era um quarto no sótão, com o teto inclinado e muito pequeno [em Stuttgart]. Eu só podia ficar de pé, e estudar, no meio do quarto, onde tinha uma janelinha. A cama ficava embaixo de uma parede inclinada, um vão; e não tinha aquecimento. Eu acho que senti mais calor nesse lugar do que no verão do Brasil, porque o sol batia a tarde toda e virava um forno; e quando chegou o inverno não tinha calefação. Um dia eu fui lá embaixo e pedi às donas que moravam lá --"não vou agüentar, vou morrer de frio". Aí elas me deram um aquecedorzinho mínimo, com aquelas resistências que ficam vermelhas; eu botava bem perto da cama mas ouvia as reclamações: "não pode ficar ligado muito tempo, a eletricidade é muito cara"... Eu botava o mínimo possível, pelo menos para entrar na cama e dormir. E ali também não tinha banho! Só uma pia e um toalete. E a pia ficava exatamente em cima da privada, eu tinha que ficar inclinado pra usar o toalete. Não tinha espaço para mais nada. Eu podia estudar até 10 da noite, tinha sido a única coisa que me importou na hora de entrar. E eu fiquei nesse lugar quase dois anos. Mas eu estudei muito, foi bom nesse sentido. Eu almoçava na escola, no refeitório, que era barato e onde você podia comer quanta batata e macarrão quisesse; de noite e de manhã eu comia um pedacinho de pão com leite. Por isso é que eu fiquei tão magro nessa época, perdi muito peso.
Eu tenho um grande medo de estar sozinho no palco. Um medo terrível! Eu não sei se é por falta de costume, depois de tanto tempo tocando com orquestra, com pianista, com formações de grupo...e de repente você vê aquele palco onde só tem uma cadeira. Vou entrar sozinho?!? É como a Martha [Argerich] que resolveu não tocar mais recital solo, acho que ela sente um pouco esse medo; isso para pianista é fatal, já que grande parte do repertório pianístico é solo --mesmo a gente considerando que o piano é um instrumento completo, que tem tudo.
Eu nunca me considerei fruto de uma tradição latina. Quando criança eu até gostava muito da música popular brasileira --por causa do meu pai, que adorava, e era capaz de cantar muita coisa-- mas eu me concentrei tanto na tradição musical européia que chegava a ter uma certa aversão a tudo o que era brasileiro. E naturalmente toda a música clássica brasileira entrava nesse balaio. Então, toda vez que eu tinha que tocar a coisa brasileira, achava aquilo uma porcaria, que troço chato, pobre, sem graça.... Quero tocar Beethoven, quero tocar Dvórak!, eu sentia assim. Mesmo os que para mim, na época, eram os compositores mais modernos, da primeira metade do século 20, como Prokofiev, Shostakovich, eu adorava esses e NÃO adorava Villa-Lobos. De Mignone eu tocava a Modinha e pronto. Eu só vim a pensar nisso muito mais tarde.
Quando aconteceu finalmente o encontro com o Karajan ele foi --simpático não diria, mas objetivo, direto ao assunto. Ele com a partitura, um pianista tocava a parte da Orquestra... não deu nem tempo de ficar nervoso. Já nos primeiros minutos ele começou a dar a opinião dele, o que achava bom, o que não achava... Eu notei logo que o importante para o Karajan era organização e forma --a forma para ele era de uma importância imensa mesmo: "Olha, senhor Meneses, está vendo como o Brahms escreve? Cadenza, mas sempre in tempo". Não se podia perder a forma da música --muita gente perde-- e ele achava que tinha de ser mantida uma linha, que seguia sempre nítida. Fez comentários e criticas ao que eu toquei e ao que ela [Anne-Sophie Mütter] estava tocando também; e era fundamental para ele que a gente imaginasse a obra [o Duplo de Brahms, que ele tocou e gravou em 1983 com a Filarmônica de Berlim] quase como uma peça de música de câmera; e que o violino e o violoncelo se encaixassem perfeitamente bem, quase como se fosse apenas um instrumento só tocando.
O Dvórak foi muito feliz na invenção desse concerto por causa dos temas magníficos, em primeiro lugar; um pouco menos feliz por causa da orquestra grande demais e do peso da orquestra sobre o violoncelo --nisso o Elgar é muito mais perfeito, nesse equilibrio. Aliás, se a gente prestar atenção, vai ver que o final do Concerto de Elgar imita o concerto de Dvórak. Eles terminam exatamente da mesma maneira: num calando, num morrendo... e de repente a orquestra tem aquele tutti maravilhoso. (...) [A peça do Dvórak] É uma obra longa, onde ele utiliza todos os recursos possíveis do instrumento; tanto o cantábile quanto o virtuosismo aparecem bem; você tem a oportunidade de realmente mostrar tudo o que sabe. Mais do que isso, é uma obra emocionante, que apela para o coração do ouvinte e também de quem está tocando. É talvez por isso que tenha se tornado um dos concertos mais populares entre todos.
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