"Getúlio não pertence à família, mas à história", diz biógrafo Lira Neto
Cearense de Fortaleza, 48 anos, autor de biografias de Castello Branco, José de Alencar, Maysa e Padre Cícero, Lira Neto gastou dois anos e meio para concluir o primeiro tomo de "Getúlio".
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Durante o período, e até a conclusão do último volume, ele está dedicado exclusivamente ao projeto, graças à venda antecipada dos direitos para cinema e TV à produtora RT Features e a um adiantamento dos direitos autorais pela Companhia das Letras.
Foi essa verba que permitiu a Lira pagar os seis pesquisadores que o auxiliam na empreitada, entre eles o seu filho Ícaro.
Como possivelmente se trata da figura pública sobre a qual mais se escreveu no país, desde que veio a público a tese, sustentada pelo autor, de que será a primeira biografia "moderna", ou "jornalística", de Getúlio, surgiram as primeiras contestações quanto ao ineditismo de certos aspectos do trabalho, respondidas por Lira Neto na entrevista.
Questionado se havia recorrido aos herdeiros do político ou se temia alguma interferência deles no trabalho, o autor declarou não estar preocupado com isso. "Getúlio Vargas não pertence mais à família. Getúlio é patrimônio da história do Brasil."
Confira trechos da conversa com o biógrafo, realizada no escritório abarrotado de Getúlios.
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Folha - Como nasceu a ideia do livro?
Lira Neto - O poder é meu objeto de pesquisa, de interesse essencial. Três dos meus livros usam a palavra poder no título: "Getúlio: Dos Anos de Formação à Conquista do Poder", "Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão" e o primeiro, "O Poder e a Peste". Só a "Maysa" escapa, mas trata do poder da mídia, da mercadoria.
Eu já cercava Getúlio tinha um tempo. Na biografia do Castello Branco, de 2004, para a qual comeceia a pesquisar em 200, eu já falava muito no Getúlio.
No último capítulo do "Padre Cícero" (2009), Getúlio também aparece, como "o satanás vermelho que vai trazer o comunismo para o Brasil".
O flerte é antigo, mas ele é um personagem tão grande, tão complexo, que faltava um pouco de autoconvencimento de que eu estaria pronto, achava que precisava me praparar mais. Assim como fazia Getúlio na política, eu deixei as coisas amadurecerem. Até que, quando entreguei os originais do "Padre Cícero, em agosto de 2009, achei que era a hora.
Vou terminar a trilogia com 50 anos, estava na hora de encarar um projeto dessa envergadura e responsabilidade.
Não havia uma obra dessa envergadura sobre ele, acho que o mais importante da história do Brasil. Tudo o que somos hoje tem raízes no getulismo.
E a editora topou na hora fazer a biografia e fazê-la em três volumes?
O Luiz Schwarcz [editor da Companhia das Letras] brincou que, depois do "Padre Cícero", eu deveria pegar uma encrenca menor. Eu disse, "Não, quero um encrenca maior ainda. Quero Getúlio".
Ele topou na hora. Ele tinha também esse desejo de preencher essa lacuna histórica.
Como foi o processo de pesquisa?
A primeira tarefa era adquirir o maior número possível de livros, pesquisas, documentos e teses. Isso consumiu quase um ano de trabalho.
Depois fui em busca das fontes primárias. É o meu momento preferido, o da apuração jornalística.
A primeira coisa era investigar os episódios que permaneciam envoltos numa certa névoa, como o caso dos dois assassinatos.
[Getúlio foi acusado por adversários, notadamente Carlos Lacerda, de participação em ao menos dois assassinatos, um aos 15 anos, de um estudante paulista, numa briga em Ouro Preto; outro quando já era político, de um índio no RS. Nos dois casos, era inocente, no segundo o condenado era um homônimo.]
Tentei localizar os documentos. No caso do índio, nos livros anteriores, os autores se dividiam entre os que diziam que era verdade e os que diziam que não era, mas sem base documental. A única pessoa que cantou a bola foi o Luthero [filho de Getúlio, no livro "Getúlio Vargas, A Revolução Inacabada"]. Fui ao interior do Rio Grande do Sul atrás do inquérito e vi que era um caso de homonímia.
Simon Plestenjak/Folhapress | ||
Jornalista Lira Neto, autor de nova biografia sobre Getúlio Vargas, que será lançada pela Companhia das Letras |
Quando o sr. anunciou o pioneirismo das pesquisas, no ano passado, o professor gaúcho Juremir Machado da Silva, autor de um romance biográfico sobre Getúlio, escreveu um artigo no jornal "Correio do Povo" criticando o sr. e dizendo que ambas as histórias já estavam esclarecidas em outras obras. O sr. leu o artigo dele? O que achou?
Desafio qualquer pessoa a mostrar onde estão as citações ao inquérito original. Os documentos estavam intactos nos arquivos, fui o primeiro a manuseá-los.
Nenhum dos livros que o Juremir citou apresenta os documentos do inquérito, ninguém teve a preocupação de ir aos documentos. Citar de orelhada é fácil.
Não tenho a mínima intenção de polemizar com Juremir, não o valorizarei a esse ponto. O polemismo é a doença infantil do jornalismo.
Veja bem, eu não sou o primeiro a dizer isso, mas o primeiro a fazê-lo com base em provas documentais.
Qual é a sua relação pessoal com a figura de Getúlio, qual a imagem dele no seu imaginário infantil?
Minha mãe [Darcy, 84, que tem o mesmo nome da mulher de Getúlio] é uma getulista muito ferrenha. Quando comecei a biografia, ela me disse: "Não vá falar mal do meu velhinho".
Na minha infância, ele era um mito, o pai dos pobres, o modernizador do Brasil.
E hoje, o que o sr. pensa dele?
Ele é fascinante justamente pela impossibilidade de classificá-lo de forma única, por seu potencial de ambivalência. Fez muito bem e muito mal ao país, e sua herança continua a dividir opiniões. Não sou eu que vou resolver essas questões. Quero provocar indagações.
Qual a vacina para manter a objetividade no trabalho, para não se contaminar pelo Fla-Flu político-ideológico que cerca o personagem?
Ser jornalista. Sei que a objetividade é um mito, mas um jornalista tem de buscar acima de tudo isenção e contemplar o maior número de ângulos, não fechar os olhos para nenhuma possibilidade de interpretação. Não fechar os olhos aos detratores nem aos que só têm eleogios, mas tentar compreendê-los, entender as nuances. Sou um repórter.
Este primeiro volume parece ser mais favorável a Getúlio...
É que ele ainda não se tornou um ditador. O começo é sobre um sujeito em formação, mas que já manifesta o caráter autoritário que viria depois.
O autoritarismo e a ditadura não eram anormais na época. Os grandes líderes gaúchos acreditavam que tinham o dever de conduzir a sociedade a seu destino histórico.
O que eles buscavam era o poder. Getúlio não ficou rico com a política. Ele buscava um poder forte, tutelar sobre as classes trabalhadoras.
Os herdeiros têm sido um entrave para muitos biógrafos. Qual foi sua relação com a família de Getúlio?
Não me preocupei com a família. Nenhum herdeiro vai ousar se atrever a impedir [que se conte a história de Getúlio]. Getúlio Vargas não pertence mais à família. Getúlio é patrimônio da história do Brasil.
Em que pé estão os próximos volumes?
Estou com 150 páginas escritas do segundo. Todos deverão ter mais ou menos o mesmo tamanho [cerca de 500 páginas de texto, fora apêndices], quero entregar no começo de 2013. O terceiro deve sair em agosto de 2014.
Não pode revelar algumas histórias do segundo volume [de 1930 a 1945, a Era Vargas e o Estado Novo]?
Nem bêbado eu revelaria. Mas há coisas graves, sobre as quais a imprensa brasileira da época silenciou e a de outros países não.
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